Topo

Wálter Maierovitch

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A jornal da Itália, Bolsonaro mente ser italiano e diz que voltará ao poder

Colunista do UOL

03/02/2023 13h11

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O jornal italiano Corriere della Sera, fundado em 1876 e o segundo em tiragem e número de leitores, enviou à Flórida a jornalista Viviana Mazza. A tarefa dela era entrevistar o ex-presidente Jair Bolsonaro, em autoexílio na cidade de Orlando.

Na pauta de Mazza, dois pontos a destacar. A jornalista perguntou a respeito dos atentados de matriz terrorista —com tentativa de golpe de Estado— em Brasília em 8 de janeiro. Indagou, ainda, sobre a polêmica acerca da cidadania italiana de Bolsonaro —tema que causou, na Câmara dos Deputados italiana, reações de protestos e a expedição de ofício ao Ministério de Relações Exteriores para aclaramentos.

1-) 'Vou voltar ao poder'

Bolsonaro frisou à jornalista a sua certeza de que voltará ao poder: "si dice certo di tornare al potere" ( se disse certo de voltar ao poder).

Sua certeza de retorno à Presidência da República, na condição de chefe de Estado e de governo, decorre, como se extrai da entrevista, de algumas certezas, acompanhadas de insinuações sem suporte em provas e indícios.

Bolsonaro está convicto de haver ganho as eleições e insinuou decorrer a vitória de Lula de fraude eleitoral: "abbia vinto le elezioni con i brogli" (venceu as eleições com as fraudes).

No Brasil, a declaração não é novidade. A surrada tese de fraude em urnas eletrônicas e totalização de votos em sala secreta foi, motivadamente, refutada pela Justiça Eleitoral em recurso impugnatório apresentado pelo partido político de Bolsonaro.

Os observadores internacionais das eleições chegaram bem antes dos dois turnos. Estiveram com técnicos, acompanharam as eleições e não se convenceram do esperneio barulhento de Bolsonaro.

À jornalista, Bolsonaro omitiu a impugnação apenas parcial apresentada à Justiça Eleitoral —ou melhor, o partido ter pedido a anulação —tão somente e só— dos resultados provindos de urnas de fabricações mais antigas. A respeito, de tais urnas teriam saído resultados desfavoráveis a Bolsonaro.

Pela mão do gato, isto é, pelo PL, o derrotado Bolsonaro quis, ilegal e absurdamente, que fossem validados apenas os votos das urnas novas, que lhe davam vitória. Em outras palavras, pretendia com uma apuração seletiva que os votos desfavoráveis fossem anulados.

Bolsonaro sustentou na entrevista ao Corriere della Sera, sem explicar a razão da sua insinuação, que Lula não durará :"Lula non durerá".

A jornalista entrevistadora vive na Itália e, por isso, não sabe que os bolsonaristas radicais estão a espalhar boatos maldosos e inverídicos sobre a volta do câncer de garganta do presidente Lula e a evolução galopante de uma esclerose senil.

Nada disso, frise-se, conta com sustento médico-científico e nada a população percebe.

Lula mostra-se o falante de sempre. Esbanja vitalidade. Desloca-se por toda parte, como se viu, há pouco, na visita aos povos yanomamis de Roraima, diante de suspeitas de crimes de genocídio, com apurações determinadas pelo STF e que poderão levar à responsabilização de Bolsonaro.

Ao voltar a tocar nas fraudes (brogli), Bolsonaro mostrou à jornalista o seu lado messiânico-trumpista.

Na sua visão, as eleições foram fraudadas em benefício de Lula e isto gerou um ponto de preocupação, de interrogação na sua cabeça: "alla fine siamo rimasti com um punto interrogatico nella testa" (no final, ficamos com um ponto interrogativo na cabeça). Qual interrogação, Bolsonaro não explicitou.

Pelas respostas fugidias, Bolsonaro não apontou a autoria das fraudes. Não acusou a Justiça Eleitoral, que não existe na Itália. É a justiça comum, pelo Tribunal de Roma (capital do estado unitário italiano) a competente para solucionar, quando provocada, conflitos decorrentes de eleições.

A pergunta que não podia faltar, aquela sobre a opinião de Bolsonaro sobre os atos subversivos (eversivi) do 8 de janeiro, Bolsonaro, que sempre fanatizou e moveu os cordéis dos radicais, afastou-se da responsabilidadade criminal: "Non è stata la nostra destra, il nostro popolo" (não foi a nossa direita, o nosso povo).

A respeito da resposta e em esclarecimento aos leitores, a jornalista, entre parênteses, escreveu: "a tesi dei suoi è che siano stati degli infiltrati" (a tese dos bolsonaristas é que foram os infiltrados).

Os italianos são os grandes tratadistas da prova no processo penal. À frente de um acontecimento grave, subversivo, atentador ao Estado democrático e golpista, ensinam os tratadistas dever ser feita a seguinte pergunta: a quem interessava? A resposta lógica aponta para Bolsonaro.

Como não poderia faltar, Bolsonaro colocou Deus no meio. Afirmou que está a enfrentar o presente momento com a certeza da sua volta ao poder: "afronteremo questo momento e, a Dio piacendo, vinceremo insieme" ("afrontaremos este momento e, se Deus quiser, venceremos juntos").

2-) "Sono italiano" (sou italiano)

Quanto à polêmica no Palácio Montecitório, suntuosa sede da Câmara dos Deputados italianos, onde se falou dos atos antidemocráticos e golpistas de 8 de janeiro, o entrevistado Bolsonaro se declarou italiano, de avós venezianos:

"Sono italiano. Il mio nome è Bolsonaro, i miei nonni erano di Padova. In basi alla vostra legge -sic-, sono italiano" (sou italiano. O meu nome é Bolsonaro, os meus avós eram de Padova. Com base na vossa lei [sic], sou italiano).

Sou italiano e com base na vossa lei representa uma contradição, que os pretores romanos do tempo imperial, na então corrente língua latina vulgar, chamariam de "contradictio in adiecto". Uma contradição de quem afirma ser, mas usa a expressão vossa, de significado excludente, ou seja, sou pela lei de vocês e não minha. Bolsonaro usou duas palavras opostas: os possessivos seu e vossa.

Voltando à sessão da Câmara e ao deputado realizador de indignado e acalorado discurso. O referido deputado falou sobre eventuais providências legais diante de boatos de Bolsonaro ser cidadão italiano ou estar a buscar a cidadania italiana.

Ressaltou o deputado tratar-se de um cidadão, ex-presidente do Brasil, responsável, "segundo tudo indica", por incitar, subverter e atentar contra o Estado Democrático de Direito.

No encerramento da sessão da Câmara, aprovou-se requerimento de consulta sobre a cidadania de Bolsonaro. O ofício dirigiu-se ao ministro Antonio Tajani, titular do Ministério de Relações Exteriores.

Cassar cidadania pelo sangue é algo duvidoso. E impedir o reconhecimento, por indignidade, exigiria processo demorado e eventual consulta à Corte Constitucional (na Itália, existe a possibilidade de consulta).

É bom recordar. A cidadania italiana deriva do vínculo de sangue (jus sanguinis), e não do lugar do nascimento (jus soli).

Em erudito e apurado voto do ministro Francisco Rezek, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu a possibilidade de o cidadão brasileiro (jus soli) poder, em razão dos laços de sangue (jus sanguinis), obter, sem perder a brasileira, a cidadania de outro Estado nacional.

Com base no sedimentado entendimento do STF, muitos brasileiros buscaram a cidadania de sangue. A título de exemplo, o ex-presidente da Câmara Eduardo Consentino Cunha tem a cidadania italiana. Marisa Letícia, a falecida esposa de Lula, conseguiu o reconhecimento da cidadania italiana.

Todo mundo sabe ter sido o escritor italiano Carlo Collodi o inventor do imaginário boneco falante de nome Pinocchio. O boneco (burrattino) apareceu no best-seller "Le avventure di Pinocchio - Storia di um burattino". A cada mentira contada, crescia o nariz do boneco. Bolsonaro passou na entrevista, várias vezes, pelo "burrattino" Pinóquio.

Repita-se. Pela Constituição italiana de 1948, a cidadania decorre do chamado jus sanguinis (direito por sangue), e não pelo jus soli (lugar do nascimento).

Com efeito, pelo jus sanguinis, Bolsonaro, em tese, pode vir a postular a cidadania italiana. E a cidadania italiana sempre retroage à data do nascimento.

Num histórico jornal da terra de Collodi, as afirmações são sempre verificadas.

A jornalista que se deslocou à Flórida estava diante de um escolado e conhecido contador de mentiras (mensogne), que não cora as faces e nem o seu nariz cresce. Mais ainda, Bolsonaro, como é público e notório, não se envergonha de dizer besteiras (cazzate).

O italiano Ministério de Relações Exteriores não possui registro, no seu cadastro nacional, de cidadania concedida a Jair Messias Bolsonaro, apurou Mazza. Tem o registro apenas da cidadania da primeira esposa do ex-presidente.

A jornalista foi mais longe na apuração e conseguiu declaração do embaixador italiano no Brasil de não ter Bolsonaro requerido o reconhecimento da cidadania italiana.

Na embaixada italiana do Brasil, só existem pedidos de reconhecimento de cidadania feitos pelo senador Flávio Bolsonaro e o deputado Eduardo Bolsonaro, ambos filhos do ex-presidente.

Como sabe até um bacharel de Direito reprovado em exame de qualificação profissional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), uma coisa é a expectativa de se obter o reconhecimento de um Direito. Outra, totalmente diversa é o reconhecimento do Direito anteriormente postulado.

Bolsonaro disse "sou italiano". E invocou a lei, na verdade era a Constituição. Quis confundir, na base do sou, mas não sou. Tem a expectativa do Direito, mas não o Direito reconhecido.

Num pano rápido, na terra de Dante Alighieri, a entrevista de Bolsonaro apresentou-se recheada de mentiras (menzogne) e besteiras (cazzate).