Fala da OMS é tirada de contexto para dizer que órgão é contra isolamento
É enganosa a afirmação de que a OMS (Organização Mundial da Saúde) não recomenda o confinamento como estratégia de combate ao novo coronavírus. Ela foi divulgada pelo blog Estibordo, que tem uma seção dedicada a traduzir artigos de viés político de direita. O texto, compartilhado pela página do grupo no Facebook, foi baseado na entrevista de Margaret Harris, porta-voz da OMS, para o jornal The Sydney Morning Herald, sobre o afrouxamento da quarentena na Austrália.
O título "OMS diz que nunca aconselhou a aplicação de confinamento como medida para o combate ao coronavírus" desinforma o leitor, já que ao longo do texto fica claro que a declaração da representante da OMS é no sentido de que a organização não recomenda o isolamento como a a única medida de combate à pandemia.
Por que investigamos isso
O Comprova monitora conteúdos duvidosos sobre coronavírus e sobre a covid-19 e encontrou o link para esse texto sendo compartilhado nas redes sociais. Também recebeu de seus leitores solicitações de checagem. A decisão pela checagem considerou dois aspectos:
Um estudo feito por pesquisadores brasileiros apontou que o Brasil deve ser o próximo epicentro de contágio do novo coronavírus no mundo. Como ainda não há medicamento para tratar a covid-19 nem vacina para preveni-la, medidas de isolamento e distanciamento social são apontadas por autoridades sanitárias como as únicas maneiras de reduzir a contaminação do novo coronavírus.
O Comprova verifica a veracidade de conteúdos suspeitos sobre coronavírus e a covid-19 que tenham grande viralização. O texto verificado está presente em mais de uma centena de postagens no Twitter e no Facebook.
Enganoso para o Comprova é todo o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro com o propósito de mudar o seu significado; que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor.
Como verificamos
Começamos com o artigo original citado no texto do Estibordo, uma reportagem do jornal australiano The Sydney Morning Herald. Também entramos em contato com o escritório da Organização Mundial da Saúde no Brasil para confirmar que a entrevistada, Margaret Harris, trabalha como porta-voz da organização e quais são as diretrizes para o isolamento social recomendadas pela OMS.
Por fim, procuramos informações sobre o combate ao novo coronavírus nos site do Ministério da Saúde da Austrália e na imprensa local.
O que consta na declaração original
O texto publicado no blog Estibordo foi traduzido de um artigo originalmente publicado em francês pelo site russo Sputnik. Na página "Quem somos?", a Sputnik se identifica como uma agência de notícias da Rússia e afirma que pertence à Empresa Federal Estatal Agência Internacional de Notícias Rossiya Segodnya.
Tanto o artigo em francês quanto a tradução brasileira usam a palavra "nunca" no título ("OMS diz que nunca aconselhou a aplicação de confinamento como medida para o combate ao coronavírus") e, com isso, passam a impressão de que a organização é contra as medidas de isolamento em geral.
A declaração da porta-voz da Organização Mundial da Saúde foi tirada de contexto. A matéria original, publicada pelo jornal The Sydney Morning Herald, é sobre o afrouxamento das medidas de isolamento na Austrália. Na entrevista, Margaret Harris afirma que a Austrália e a Nova Zelândia são exemplos de combate à pandemia porque fizeram uma quarentena rigorosa e colocaram em prática medidas para identificar a disseminação do novo coronavírus entre a população. "Nunca dissemos façam lockdown — dissemos identifiquem, façam o rastreamento e acompanhem o desenvolvimento dos casos, isolem e tratem os doentes", disse Harris.
O texto também confunde ao misturar conceitos diferentes: distanciamento social, isolamento e lockdown. Para a OMS, distanciamento social são as medidas aplicadas a entornos sociais específicos, ou à sociedade em sua totalidade, para reduzir o risco de adquirir ou difundir a covid-19. O lockdown é a forma mais radical, quando as pessoas são proibidas de sair de casa — salvo exceções como atendimento médico. Já o isolamento (também chamado de "confinamento") é a separação de pessoas que já estão doentes para não propagar a infecção ou contaminação. De acordo com a assessoria de imprensa da OPAS, braço pan-americano da OMS, "distanciamento social e isolamento são algumas das medidas não farmacológicas recomendadas no contexto da covid-19".
A crítica de Harris, da OMS, é aos países que implantaram políticas de lockdown inspiradas nas medidas colocadas em prática em Wuhan, primeira cidade onde o novo coronavírus foi detectado na China, sem a aplicação de outras políticas de controle, como o rastreamento de todos que tiveram contato com doentes para o isolamento dessas pessoas e o testes realizados em massa na população. "É muito mais do que apenas fechar tudo", disse Harris.
Situação na Austrália
A Austrália conseguiu achatar a curva da doença. O país estava mais vulnerável pela proximidade (geográfica e comercial) com a China e pelos navios de cruzeiro que circulam por lá. Os resultados positivos se devem a uma ação rápida do governo logo que os primeiros casos foram confirmados, em 20 de janeiro. Até o dia 05 de maio, o país tinha registrado 6.849 pessoas infectadas pela covid-19 e apenas 96 mortes.
A porta-voz da OMS também elogiou a forma como o país, e a Nova Zelândia, "levaram a pandemia realmente a sério, insistindo que era um caso grave, e comunicando isso para a população", disse ao The Sydney Morning Herald.
As medidas de distanciamento social na Austrália foram estabelecidas pelos estados. Mas todas tinham em comum o rigor. As autoridades de saúde rastrearam os doentes, que ficaram isolados. Quem teve contato com pessoas infectadas ou chegou ao país depois do dia 15 de março também teve que ficar confinado. Além disso, foram realizados testes em massa na população. Com a redução no número de os casos, a partir da última semana de abril os estados tiveram a autorização do governo federal para começar uma volta gradual à normalidade.
Contexto
Textos afirmando que medidas de isolamento social e quarentena são ineficazes têm se espalhado por veículos e grupos de mensagem de direita, muitas vezes acompanhados de mensagens que estimulam a volta das atividades econômicas. O Projeto Comprova já verificou conteúdo com informações da OMS divulgadas de maneira enganosa em outra ocasião.
O blog Estibordo divulga conteúdos de direita, muitas vezes já publicados fora do Brasil. "Nesta seção trazemos traduções feitas por nossa equipe dos maiores escritores ao redor do mundo defendendo a causa da direita no cenário político atual", diz a descrição da seção "Tradutores de Direita", que também dá nome ao grupo de Facebook ligado ao blog. Os posts mais recentes do grupo trazem críticas ao governador de São Paulo, João Doria, e às medidas de isolamento adotadas pelo Estado. Esses questionamentos aparecem, inclusive, na publicação com o link do texto, embora o conteúdo não tenha nada a ver com as políticas paulistas.
O Comprova entrou em contato com os autores do blog pelo Facebook, mas não obteve resposta.
Alcance
A publicação do blog Estibordo divulgada no grupo de Facebook Tradutores de Direita teve 623 compartilhamentos até o dia 05 de maio. No Facebook, encontramos outras 60 postagens do mesmo conteúdo. No post que mais viralizou no Twitter, o texto traduzido foi curtido 564 vezes até a mesma data e tuitado por outros 45 perfis. Mas uma publicação da mesma usuária com a versão do conteúdo em francês, publicada pela agência Sputnik, teve muito mais alcance, com mais de cinco mil curtidas.
O Comprova é um projeto integrado por 40 veículos de imprensa brasileiros que descobre, investiga e explica informações suspeitas sobre políticas públicas, eleições presidenciais e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens. Envie sua sugestão de verificação pelo WhatsApp no número 11 97045 4984.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.