Médica usa informações falsas em vídeo para falar em cura da covid-19
O vídeo em que uma médica camaronesa radicada nos Estados Unidos defende um coquetel de medicamentos como cura para a covid-19 e critica o uso de máscaras apresenta informações falsas. Tanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto as autoridades sanitárias dos Estados Unidos e do Brasil já declararam que ainda não há cura para o novo coronavírus e que as máscaras são uma das poucas medidas eficazes para evitar a propagação do vírus.
A gravação foi feita nos Estados Unidos e teve ampla viralização em redes sociais, sendo compartilhada até pela cantora Madonna e pelo presidente norte-americano Donald Trump. Twitter, Facebook, Instagram e YouTube derrubaram algumas publicações do vídeo alegando que ele cria desinformação sobre a pandemia.
No Brasil, o conteúdo viralizou com legendas em português em uma postagem no Twitter. A equipe do Comprova tentou contato, por meio de mensagem na plataforma, com a mulher que publicou o vídeo, mas não recebeu retorno até a publicação deste texto.
Como verificamos?
A médica que fala no vídeo aparece nas legendas como Stella Emanuel. Uma busca simples no Google mostrou que a grafia do sobrenome é Immanuel. Com o nome correto, encontramos informações sobre ela em sites de veículos dos Estados Unidos. Também foi possível localizar seu registro profissional no Texas Medical Board (TMB), órgão equivalente ao Conselho Regional de Medicina.
Pesquisamos sobre a viralização do vídeo nas plataformas Tweetdeck e CrowdTangle, buscamos informações a respeito do uso de medicações e máscaras no combate à covid-19 em sites oficiais da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Center for Disease Control and Prevention (CDC), National Health Service (NHS) e do Ministério da Saúde brasileiro. Também nos embasamos em checagens anteriores feitas pelo Comprova sobre tratamentos para o novo coronavírus.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 29 de julho de 2020.
Verificação
O vídeo que viralizou pelo Twitter foi gravado em frente ao prédio da Suprema Corte dos Estados Unidos, em Washington D.C., capital do país. Nas imagens, a médica afirma que a covid-19 tem cura, que já tratou mais de 350 pacientes e nenhum morreu. "Esse vírus tem uma cura! Ela se chama hidroxicloroquina, zinco e azitromicina. Eu sei que as pessoas querem falar sobre máscaras. Oi? Vocês não precisa de uma máscara. Tem cura!", alega.
As imagens foram feitas durante o White Coat Summit (Encontro do Jaleco), reunião do grupo de médicos America's Frontline Doctors (Médicos da Linha de Frente), que questiona o consenso científico sobre o novo coronavírus. O evento foi organizado por um grupo de direita ligado ao Partido Republicano, os Tea Party Patriots. O vídeo foi compartilhado pelo site conservador Breitbart News, chegando a 13 milhões de visualizações.
A gravação ganhou ainda mais notoriedade depois que foi postada na página do Twitter do filho mais velho do presidente norte-americano, Donald Trump Jr, que escreveu que as imagens "precisavam ser vistas". A plataforma tirou o vídeo do ar e suspendeu o acesso de Trump Jr. por 12 horas, alegando que o tuíte disseminava informações falsas. Mas o pai dele, Donald Trump, já tinha compartilhado o conteúdo para mais de 84 milhões de seguidores.
Além do Twitter, Facebook e YouTube tiraram o vídeo de suas plataformas também sob a alegação de que ele espalha desinformação sobre a covid-19. Stella Immanuel reclamou da decisão. "Se a minha página não voltar o Facebook vai cair em nome de Jesus", escreveu. No dia seguinte, a médica publicou uma outra versão do vídeo, gravada de outro ângulo mas com as mesmas informações, em seu perfil no Twitter.
Outros famosos compartilharam o vídeo. A cantora Madonna publicou as imagens no Instagram. A plataforma marcou o post como falso e, menos de 24 horas depois, a artista deletou a postagem.
Aqui no Brasil, as imagens foram compartilhadas por Paula Marisa, uma apoiadora do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) com mais de 147,9 mil seguidores no Twitter. Seu perfil a identifica como jornalista e especialista em educação e tem, entre os seguidores, o próprio presidente e seus filhos Flávio, Carlos e Eduardo. Os ministros Onyx Lorenzoni (Cidadania) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores) também a seguem.
Muitas das postagens de Paula minimizam a situação da pandemia. Um dos compartilhamentos feito na rede é de uma postagem do deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) creditando o aumento de casos de covid-19 no Rio Grande do Sul ao frio — e não à reabertura do comércio na região.
Além de compartilhar o vídeo investigado nesta verificação, Paula publicou uma notícia acusando as redes sociais de censura depois de apresentarem outras checagens em que ele foi considerado falso.
O Comprova entrou em contato com ela por meio do Twitter, mas não recebeu retorno até a publicação deste texto.
Quem é a médica que aparece no vídeo?
Stella Immanuel é médica de Camarões radicada no Texas, nos Estados Unidos. Seu registro no Texas Medical Board (TMB) é válido até novembro de 2020. No vídeo verificado, Immanuel afirma que conhece bem a hidroxicloroquina porque a prescrevia para o tratamento da malária na Nigéria, onde estudou medicina. Segundo o TMB, a médica se formou na University of Calabar, na Nigéria, e fez a residência em pediatria em Nova Iorque. Ela tem uma clínica privada na cidade de Houston.
Immanuel também é pastora evangélica e em seus sermões costuma fazer declarações polêmicas sobre assuntos relacionados à medicina. Já afirmou que relações sexuais com demônios são a origem de doenças ginecológicas, que o DNA de aliens é usado em tratamentos médicos e que cientistas estão desenvolvendo uma vacina para acabar com as religiões. "Eles encontraram o gene na mente das pessoas que faz com que você seja religioso e agora podem vacinar contra isso", disse.
Depois da fama conquistada pela gravação verificada aqui, Immanuel publicou um outro vídeo em que exige que jornalistas e médicos, como Anthony Fauci — chefe do National Institute of Allergy and Infectious Diseases, consultor técnico da Casa Branca e um dos principais especialistas em doenças infecciosas nos Estados Unidos —, cedam amostras de urina para provar que não estão tomando hidroxicloroquina secretamente. Ela também pediu que o presidente Donald Trump a recebesse na Casa Branca.
Covid-19 tem cura?
O Center for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos e a OMS são categóricos: não há cura para a covid-19. Uma série de medicamentos e vacinas estão em estudo mas, por enquanto, nenhum teve a eficácia totalmente comprovada. Por isso, as medidas indicadas para a prevenção do novo coronavírus são não farmacológicas, como a higienização de mãos e superfícies, o distanciamento social e o uso de máscaras.
Hidroxicloroquina não tem eficácia comprovada
A médica defende um coquetel para tratar pacientes de covid-19: a hidroxicloroquina, a azitromicina e o zinco. Nenhum desses medicamentos têm eficácia cientificamente comprovada contra o novo coronavírus. O zinco é um suplemento alimentar e a azitromicina é um antibiótico, ou seja, é indicada para o combate de bactérias. Alguns médicos têm prescrito a droga para evitar o surgimento de infecções oportunistas em pacientes de covid-19.
A hidroxicloroquina e a cloroquina são drogas para o tratamento da malária e de doenças autoimunes, como lúpus. O uso das substâncias em tratamento de pacientes com covid-19 surgiu por causa de um estudo de 2005, que indicava efeitos positivos contra outros tipos de coronavírus em laboratório. Mas os testes em humanos nunca aconteceram. Em março de 2020, já com a pandemia se espalhando pelo planeta, o médico francês Didider Raoult publicou um estudo afirmando que o uso da cloroquina teria curado 75% dos pacientes com covid-19 em seis dias. A pesquisa foi alvo de críticas da revista Science, referência em pesquisas científicas, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos.
Mesmo assim as substâncias passaram a ser defendidas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Ele afirmou ter tomado hidroxicloroquina para evitar a infecção pelo novo coronavírus. Ainda assim, a Food and Drugs Administration (FDA), órgão equivalente à Anvisa, revogou a autorização para o uso emergencial da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19 no país.
O presidente Jair Bolsonaro seguiu o exemplo e passou a defender o uso da cloroquina no Brasil. Ele ordenou que o Laboratório do Exército produzisse o medicamento e a pressão pela adoção da substância custou o cargo de dois ministros da Saúde. Em 20 de maio, o protocolo adotado pelo Ministério da Saúde brasileiro ampliou a possibilidade do uso das duas drogas para pacientes com sintomas leves da doença - até então, elas eram previstas apenas em casos graves e com monitoramento em hospitais.
Estudos publicados no Journal of the American Medical Association (Jama), no British Medical Journal (BMJ) e no New England Journal of Medicine (NEJM) apontaram que pacientes tratados com cloroquina e hidroxicloroquina não tiveram melhores resultados que aqueles que não receberam os mesmos remédios.
A OMS e o National Health Service cancelaram estudos com cloroquina e hidroxicloroquina.
Neste mês, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) publicou um informe em que afirma ser "urgente e necessário que a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da covid-19" diante das novas evidências científicas.
A posição dos médicos não mudou a opinião do presidente Bolsonaro, que teve covid-19 e declarou que tomou cloroquina para se tratar. Hoje, o Ministério da Saúde tem quatro milhões de comprimidos em estoque.
O Projeto Comprova já checou conteúdos que defendiam o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina em diversas ocasiões. As verificações mais recentes são sobre um estudo realizado na França e sobre o protocolo de tratamento da covid-19 em Cuba.
Máscaras são necessárias
Stella Immanuel critica o uso de máscaras alegando que a covid-19 tem cura e, por isso, o equipamento de segurança é desnecessário. Mas em vídeos gravados em sua clínica, Immanuel aparece usando máscara do tipo N95 — que oferece maior proteção. Em outra gravação, publicada em 28 de abril, ela e uma funcionária orientam os pacientes que vão visitar a clínica para que eles higienizem as mãos e usem máscaras.
A OMS recomenda o uso de máscaras como parte da estratégia para evitar a transmissão do novo coronavírus, combinado com o distanciamento de pelo menos um metro entre as pessoas, a higienização das mãos e o cuidado para não tocar o rosto ou a própria máscara. A organização reconhece que as máscaras de pano têm efetividade limitada para evitar o contágio, mas recomenda que os governos estimulem o uso em regiões com transmissão comunitária do vírus onde haja capacidade limitada para implementar medidas de controle. A regra vale especialmente para locais onde não é possível manter o distanciamento físico, como transporte público, lojas e ambientes fechados. A OMS também sugere que as máscaras cirúrgicas e N95 sejam destinadas a profissionais de saúde, pacientes com sintomas de covid-19 e familiares e pessoas de grupos de alto risco, como idosos e portadores de comorbidades.
O CDC também recomenda o uso de proteções para evitar a disseminação do novo coronavírus. Aqui no Brasil, o Ministério da Saúde passou a recomendar o uso de máscaras caseiras em abril. Elas precisam ser feitas de duas camadas de pano, cobrir totalmente a boca e o nariz e ser justas ao rosto, sem deixar espaço nas laterais. O uso é individual e os equipamentos de proteção não podem ser compartilhados com outras pessoas.
Nesta verificação, a equipe do Comprova explica em detalhes como as máscaras ajudam na prevenção.
Por que investigamos?
Nesta terceira fase, o Comprova faz verificações de conteúdos que versam sobre políticas públicas do governo federal e sobre a pandemia de covid-19 e que tenham grande viralização. O conteúdo verificado aqui, depois de atingir milhões de pessoas ao ser divulgado pelo presidente dos Estados Unidos e por seu filho, continuou circulando nas redes sociais. A publicação no Twitter, objeto da verificação, teve quase 11 mil interações até o dia 29 de julho.
O vídeo também apareceu no Facebook, mas com menos alcance — pouco mais de duas mil interações até a mesma data. Pelos comentários é possível deduzir a razão. Um usuário reclama que o conteúdo foi apagado pela plataforma. Mesmo assim ele insistiu, publicando as imagens cinco vezes. "Venci pelo cansaço", vangloriou-se.
No caso do novo coronavírus, a desinformação provocada por conteúdos falsos e enganosos pode promover comportamentos danosos, como uma desmobilização da sociedade diante da suposta existência de uma cura para a doença. Este debate tem sido intenso tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, uma vez que os respectivos presidentes, Donald Trump e Jair Bolsonaro, têm promovido o uso da hidroxicloroquina apesar da ausência de evidências científicas sobre sua efetividade.
A "receita" que Stella Immanuel divulga contra a covid-19, unindo hidroxicloroquina, zinco e azitromicina, circula ao menos desde abril. Naquele mês, o círculo de Donald Trump levou para a fama um médico de Nova Iorque chamado Vladimir Zelenko, que alegava ter "resultados positivos tremendos" com essa combinação. O estudo, entretanto, não fora publicado em nenhum periódico de saúde.
Estados Unidos e Brasil são os dois países mais atingidos pela pandemia. De acordo com dados da Universidade Johns Hopkins, até a data desta verificação os americanos haviam registrado 4.396.030 casos de covid-19 e 150.708 mortes. Aqui, 2.483.191 pessoas foram infectadas e o novo coronavírus já custou a vida de 88.539 brasileiros.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
O site norte-americano PolitiFact verificou o vídeo com a fala de Stella Immanuel e concluiu que as alegações são falsas. No Brasil, a Agência Lupa e o Boatos.org também classificaram o conteúdo como falso.
*O material foi produzido por veículos integrantes do projeto Comprova: UOL e SBT
O Comprova é um projeto integrado por 40 veículos de imprensa brasileiros que descobre, investiga e explica informações suspeitas sobre políticas públicas, eleições presidenciais e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens. Envie sua sugestão de verificação pelo WhatsApp no número 11 97045 4984.
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