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Uma iniciativa do UOL para checagem e esclarecimento de fatos


Lula não assinou decreto para colocar fim à propriedade privada

05.jul.2023 -  O direito à propriedade privada é uma cláusula pétrea da Constituição Federal brasileira que não pode ser alterada por meio de decreto presidencial. - Projeto Comprova
05.jul.2023 - O direito à propriedade privada é uma cláusula pétrea da Constituição Federal brasileira que não pode ser alterada por meio de decreto presidencial. Imagem: Projeto Comprova

05/07/2023 15h48

É falsa a afirmação de vídeo viral de que decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) coloca fim à propriedade privada no país. O direito à propriedade privada é uma cláusula pétrea da Constituição Federal brasileira que não pode ser alterada por meio de decreto presidencial.

Conteúdo investigado: Vídeo no TikTok acusa o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de colocar "fim na propriedade privada" e iniciar o "confisco de propriedades" por meio do decreto nº 11.407 de 2023. No registro, o homem diz que, se o decreto passar pela Câmara dos Deputados, "tudo o que temos é do Estado". "Saiu no Diário Oficial de hoje que o governo vai decidir quem é o dono da propriedade e do que você tem", completa.

Onde foi publicado: TikTok e Twitter.

Conclusão do Comprova: É falso que um decreto publicado pelo presidente Lula (PT) dê poderes ao governo federal para colocar fim no direito à propriedade privada e confiscar posses no país, como alega publicação.

Instituído em 31 de janeiro de 2023, o decreto 11.407, citado na publicação, cria o Sistema de Participação Social com o objetivo de "estruturar, coordenar e articular a relação do governo federal com organizações da sociedade civil e movimentos populares para elaborar e analisar políticas públicas". Além disso, o decreto nem mesmo menciona as palavras "propriedade" ou "confisco".

Diferentemente do que afirma o autor do vídeo, o direito à propriedade é uma cláusula pétrea da Constituição Federal brasileira de 1988, ou seja, não pode ser alterado por meio de decreto nem mesmo via Proposta de Emenda à Constituição (PEC).

Presente no artigo 5º, ele estabelece que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

Ou seja, nenhum governo pode permitir via decreto que o Estado confisque propriedades privadas.

No vídeo, o autor também diz que o decreto dependerá de uma aprovação no Congresso Nacional. Entretanto, decretos presidenciais não tramitam no Legislativo. Os textos são atos voltados para a administração pública ou regulamentação de uma legislação e promulgados pela presidência. Caso sejam considerados inconstitucionais, os decretos podem ser invalidados pelo Congresso ou pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. A publicação no TikTok investigada tinha 13,5 mil curtidas, 1,7 mil comentários e 18,6 mil compartilhamentos até o dia 4 de julho. No Twitter, eram cerca de 9 mil visualizações, 114 retuítes e 181 curtidas até 5 de julho.

Como verificamos: O primeiro passo foi buscar no Google e no Diário Oficial da União (DOU) o decreto citado no vídeo e checar em que data o documento foi assinado por Lula e o que determina. Também procuramos na mídia profissional a repercussão sobre o assunto e encontramos matérias da Agência Brasil, do G1, entre outras.

Depois, buscamos apurar se é possível o presidente alterar o sistema de propriedade privada do país, como o homem afirmou no conteúdo investigado. Para isso, consultamos a Constituição.

Também procuramos informações sobre como funciona a tramitação de decretos presidenciais no Brasil. Ainda entrevistamos dois especialistas no assunto: Lucas Azevedo Paulino, doutor em direito constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Sandro Schulze, advogado especialista em direito civil e sócio do A. C Burlamaqui Consultores.

Por fim, o Comprova entrou em contato com o responsável pela publicação no TikTok.

Constitucionalidade

Para Lucas Azevedo Paulino, da UFMG, a informação "é uma fake news grotesca". Ele esclareceu que todo procedimento, seja de desapropriação ou expropriação, é bem delimitado constitucional e legalmente.

"A desapropriação é uma prerrogativa do poder público, mas tem que resguardar os direitos fundamentais", afirmou ao Comprova.

"O direito de propriedade está previsto no artigo 5º da Constituição junto com direito à liberdade, direito à vida. E todas exceções relacionadas ao direito da propriedade, todas as restrições, são previstas constitucionalmente", disse.

Segundo Paulino, as hipóteses de confisco ou expropriação de propriedade que existem estão previstas no artigo 243 da Constituição e são por:

  • cultivo ilegal de plantas psicotrópicas, ou seja, drogas; e
  • por trabalho escravo ou análogo à escravidão.

Outra hipótese para a perda da propriedade é a desapropriação, uma exceção também prevista na Constituição, em que há a indenização em dinheiro. "Isso pode acontecer por interesse público ou social, em reforma agrária ou urbana, o que está expressamente no artigo 5⁰ e em outros dispositivos", explicou.

O especialista em direito civil Sandro Schulze disse que o direito à propriedade está também protegido pelo artigo 1.288 do Código Civil. "A norma prevê, da mesma forma, que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha", explicou.

O decreto

Lançado em cerimônia no Palácio do Planalto e assinado por Lula em 31 de janeiro, o decreto 11.407 institui o Sistema de Participação Social com o intuito de garantir a interlocução entre o governo federal e movimentos sociais para elaborar e avaliar políticas públicas.

O texto prevê que a organização interministerial será gerida pela Secretaria-Geral da Presidência, responsável pela articulação com as Assessorias de Participação Social e Diversidade dos ministérios.

Na mesma data, também foi criado o Conselho de Participação Social, presidido por Lula e formado por representantes de 68 movimentos e entidades civis, que se reunirão a cada três meses para garantir a participação da sociedade na execução das propostas.

Segundo Paulino, o decreto é um instrumento de democracia participativa e obedece à Constituição e à legislação brasileira. "O texto fala sobre a participação social na administração pública. O Poder Executivo constitui conselhos para dialogar com entidades sociais e movimentos sociais, empresários e todas as forças vivas da sociedade", afirmou.

Schulze também enfatizou que o decreto assinado por Lula "não tem nenhuma relação" com confisco ou perda forçada da propriedade privada e que a norma tem o "objetivo primordial de manter um canal de comunicação eficaz com a sociedade".

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com o perfil responsável pela publicação do conteúdo no TikTok, que não respondeu até a conclusão desta verificação. Não foi possível localizar o usuário em outras redes sociais, como Twitter e Instagram. A peça de desinformação foi excluída da rede social depois do início da apuração.

O que podemos aprender com esta verificação: A tática usada na peça de desinformação é colocar o número de um decreto e fazer alegações alarmistas, sem mostrar, de fato, o que ele prevê. Ao se deparar com situações como essas, desconfie. Pesquise o texto original antes de compartilhar e/ou confiar nas informações, a fim de checar o que realmente foi determinado.

Ao buscar o link escrito no vídeo, não é possível encontrar o decreto mencionado no conteúdo. Esse pode ser outro indício de desinformação.

É relevante procurar reportagens na imprensa profissional sobre o tema. A mudança de um direito constitucional seria amplamente repercutida e discutida tanto no Congresso Nacional quanto pela sociedade civil.

Também fique atento a expressões alarmistas, como as palavras "alerta" e "importante" utilizadas no vídeo analisado e comuns em peças de desinformação. Termos exagerados como esses não costumam ser utilizados por veículos jornalísticos em contextos semelhantes.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O mesmo vídeo com informações falsas foi investigado por outras agências de checagem, como Estadão Verifica, UOL Confere, Aos Fatos e Fato ou Fake do G1. Em 2023, o Comprova já verificou que "É falso que ponte sobre o rio Araguaia tenha sido embargada pelo governo Lula" e que "É falso que Lula tenha comprado novo avião presidencial por 400 milhões".

Este conteúdo foi investigado por Estadão e Poder 360. A investigação foi verificada por Folha, Correio Braziliense, Correio do Estado, Grupo Sinos, O Popular e A Gazeta.

O Comprova é um projeto integrado por 40 veículos de imprensa brasileiros que descobre, investiga e explica informações suspeitas sobre políticas públicas, eleições presidenciais e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens. Envie sua sugestão de verificação pelo WhatsApp no número 11 97045 4984.