Fundação Casa mostra avanços, mas fantasmas da Febem ainda assombram
O número de rebeliões e de reincidências, que durante muito tempo fez com que a imagem da antiga Febem ficasse associada a denúncias de maus tratos a jovens infratores, foi drasticamente reduzido na Fundação Casa de São Paulo nos últimos anos. Em 2003, ainda no antigo modelo, foram 80 motins. Em 2009, apenas um. Desde que a nova política de descentralização das unidades, capacitação de funcionários e parceria com ONGs e entidades como a Pastoral do Menor foi adotada, a partir de 2006, a reincidência baixou de 29% para 12,8%. Os resultados impressionam, mas ainda há problemas.
Parte dos bons indicadores é resultado da criação de 42 unidades espalhadas pelo Estado, em substituição ao Complexo do Tatuapé, que centralizava as atividades na capital paulista e chegou a abrigar 1.800 jovens. Acabar com a superlotação e separar os que cometeram o primeiro crime dos que reincidiram também ajudou.
“Antes, eram centenas de adolescentes no mesmo lugar. Hoje, as unidades têm até 56 meninos. Isso resolveu o problema da rebelião e da reincidência, porque agora dá para realizar o trabalho, é possível controlar”, explicou Rodrigo Medeiros, coordenador do projeto que a ONG Ação Educativa realiza na Fundação com trinta educadores.
Além disso, houve investimento na capacitação dos funcionários. Para a Pastoral do Menor, que antes era uma grande crítica da Febem e hoje responde por algumas das unidades do interior, como Franca, Sorocaba e Jundiaí, essa medida foi fundamental para a implementação do modelo compartilhado, no qual a equipe pedagógica vem das ONGs e a segurança é dada pelo Estado.
Um fiscaliza o outro
“Não foi resultado de nenhuma varinha de condão, mas de uma mudança de paradigmas que ainda está acontecendo. Os funcionários de segurança que tentam se impor são chamados, os que estavam envolvidos com corrupção e maus tratos foram afastados. Foram contratadas novas pessoas, sem vício, e as pessoas que já estavam, e têm a experiência, foram capacitadas. O que acontece hoje é que um fiscaliza o outro”, afirmou o padre Ovídio José Alves de Andrade, coordenador da Pastoral do Menor no Estado de São Paulo, responsável pela unidade de Franca.
Segundo Rodrigo Medeiros, a Ação Educativa, por exemplo, tenta treinar seus educadores para questões envolvendo os direitos humanos, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a cultura da periferia. “Nosso foco é resgatar a cultura das comunidades de onde vêm os jovens infratores e mostrar que ali não é só uma área de violência e conflito”, disse o coordenador.
O padre Ovídio também ressalta o trabalho de levar a comunidade para dentro das unidades. “Muitas vezes o problema do jovem está na família. Muitos meninos vão para o tráfico de drogas por influência dos pais, isso está aumentando assustadoramente. É preciso tirar toda a família do tráfico. Por isso, temos que trabalhar quem fica do lado de fora e criar vínculos nos projetos sociais.”
Avanços questionáveis
Para o professor Roberto da Silva, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), que acompanha de perto as mudanças no sistema socioeducativo, os avanços são questionáveis e estão limitados às unidades que adotaram o modelo compartilhado (com participação da sociedade civil). Hoje, a Fundação conta com 24, de um total de 51 unidades, no novo modelo.
“Eliminar os espancamentos e expurgar funcionários envolvidos em tortura e tráfico de drogas não é avanço. É retomar a normalidade”, disse Silva. “A Fundação não abraçou por inteiro uma proposta de mudança. O que eles fazem é cooptar as ONGs para executar o projeto deles. Algumas aceitam, outras não. As que aceitam fazem o que podem dentro de um modelo imposto, que não deu certo antes.”
Segundo Silva, ainda é possível detectar nos jovens uma postura típica dos tempos de Febem: cabeça raspada, submissão diante dos educadores, ociosidade, relações de prêmio e castigo, cabeça baixa e mãos para trás. “É preciso mudar isso e adotar relações mais pedagógicas. É preciso recuperar a confiança do adolescente no sistema, com o fim da violação dos diretos humanos, das humilhações e das punições”, pontuou o professor.
Silva reconheceu que no modelo compartilhado os avanços são mais evidentes, mas questionou a ausência das novas práticas em mais de metade das unidades.
Resistência está caindo
De acordo com a presidente da Fundação Casa, Berenice Giannella, que administra a mudança desde 2005, foram adotados vários programas pedagógicos para atender a diferentes situações de internação. Cada unidade tem liberdade para adotar um modelo, mas sempre dentro das diretrizes da Fundação.
“Nossa ideia é manter apenas algumas unidades com gestão compartilhada, porque também temos bons modelos de gestão plena. Quem critica precisa vir ver como funcionam as unidades. Os meninos têm atividades o dia inteiro, mas têm disciplina também”, ressaltou.
Segundo ela, mesmo as unidades que mantiveram o modelo antigo passaram por uma reformulação. Como os funcionários da Fundação são concursados e têm estabilidade, foi reforçado o trabalho da corregedoria para investigar denúncias e afastar profissionais quando houver falta que permita demissão por justa causa.
“Nós tínhamos funcionários que jamais haviam recebido capacitação. Hoje eles são treinados e toda a resistência que a gente teve no começo está caindo”, finalizou.
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