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Linchadores não acham que praticam crimes nem tentam esconder identidade

Fernando Cymbaluk e Gil Alessi

Do UOL, em São Paulo

09/05/2014 06h00

Onde o Estado é ausente, a população se vê obrigada a resolver seus problemas sozinha e abre-se um grande espaço para linchamentos e outras reações exacerbadas de violência. É o que revela um levamento de casos registrados em São Paulo entre 1980 e 2010 feito pela pesquisadora Ariadne Natal, do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo) e autora da tese "Trinta Anos de Linchamento na Região Metropolitana de São Paulo".

“Nestes locais a população está acostumada a resolver os próprios problemas: é a lotação clandestina onde não tem linha de ônibus, a vizinha que cuida do filho das outras porque o bairro não tem creche, o ‘gato’ na luz onde não tem poste”, explica.

E, quando isto chega ao âmbito da segurança, a falta de apoio ou excessos da polícia, a descrença na Justiça e, consequentemente, o medo de que um suposto criminoso fique impune, transformam atos de "barbárie" --como linchamentos-- "aceitáveis por parte da população", diz ela.

Foi o que aconteceu com a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, que morreu no sábado (3), após ser linchada por moradores do bairro Morrinhos, em Guarujá (SP). Ela foi confundida com uma mulher acusada de sequestrar crianças para rituais de magia negra, que teve seu retrato falado divulgado nas redes sociais.

Segunda a pesquisadora, o linchamento acontece sempre em local público, com muitas testemunhas. “Em todos os casos que eu estudei, os agressores não tentam esconder sua identidade, ninguém quer mascarar sua participação. Eles não veem aquilo como um crime, mas sim uma forma de ‘prevenir’ um outro crime.”

Ariadne ressalta ainda que o caso Fabiane só causou comoção pública depois que se descobriu que as acusações contra ela eram falsas. “Uma parcela da sociedade acha válido este tipo de crime, desde que a culpa da vítima seja comprovada”, afirma.

Para ela, o fato de existirem vídeos e fotos do linchamento reforça o argumento de que as pessoas se sentem confortáveis o suficiente com a cena, a ponto de gravá-las. "Isso mostra o quanto o linchamento é aceitável. A vítima é deposta de qualquer humanidade, e por isso é aceitável gravá-la”.

“Mas a sociedade não tem condições de tomar para si o processo acusatório e jurídico, apesar de todas as falhas que eles tenham. Esse tipo de ação é incompatível com o sistema democrático”, alerta.

O professor de ética Eugênio Bucci, da Escola de Comunicações e Artes da USP (Universidade de São Paulo), faz análise semelhante e ressalta que casos bárbaros de violência são um reflexo da raiva, da impaciência e da desesperança carregadas pela população continuamente desassistida e abandonada. 

Para ele, a morosidade da Justiça, a ineficiência das instituições e até mesmo o despreparo da polícia são expressões da ausência do Estado que deixa as pessoas "ao Deus dará".

"O exemplo que a polícia dá não é de conciliação, de proteger as pessoas. Ela só dá exemplo de truculência". Nesse sentido, qualquer boato na internet é capaz de servir "como uma fagulha em ambiente inflamável", analisa.

O especialista também afirma que o sensacionalismo de parte da imprensa contribuiu, ao longo dos anos, para criar uma cultura de violência. "A maneira desrespeitosa com que alguns programas de rádio e TV tratam os suspeitos pobres no Brasil, estigmatizando, ajuda a criar esse ambiente explosivo", analisa. 

Se de um lado está a imprensa que deixa de fazer uma cobertura responsável e baseada nos valores democráticos, cobrando as autoridades e mostrando as falhas do Estado, de outro estaria o internauta, que passa a agir como um propagador de informações, mas sem a responsabilidade do ofício.

“É preciso ter em mente as possíveis consequências. Hoje, todo cidadão tem poder de mídia. Mas nem todo cidadão percebeu que isso requer dele uma responsabilidade", ressalta Bucci.