Falência ou intervenção federal? O que vem após a calamidade no Rio?
O caos financeiro vivido pelo Estado do Rio de Janeiro resultou em um decreto de calamidade pública, publicado em junho, para que a União pudesse agilizar a liberação de quase R$ 3 bilhões. A justificativa era a garantia da segurança nos Jogos Olímpicos e a conclusão das obras da Linha 4 do metrô. Este foi o ápice de uma crise que começou em 2014 e que se agravou no ano seguinte, com fechamento de hospitais, atraso no pagamento de salários e prejuízo a serviços essenciais, entre outros problemas.
Desde então, o Estado implementou medidas de contingenciamento, mas ainda está a respirar por aparelhos. Ao UOL, o secretário da Fazenda, Gustavo Barbosa, afirmou: "Infelizmente, a gente tem deixado de pagar vários fornecedores. Não estamos conseguindo cumprir todas as obrigações em função da queda na arrecadação". O deficit previsto para este ano --já minimizado pelo aporte da União-- está estimado em R$ 16 bilhões.
Na semana passada, a colunista do jornal "Extra" Berenice Seara publicou uma nota em que afirma que "o governo do Rio vai decretar falência" até o fim do ano. Segundo ela, em uma reunião para discutir os modelos de privatização da Cedae (Companhia Estadual de Distribuição de Águas e Esgotos), autoridades do Executivo falavam do assunto como "algo concreto".
As informações foram posteriormente negadas pelo Palácio Guanabara e pelo secretário estadual da Fazenda, Gustavo Barbosa. "Não houve reunião em momento algum. Aliás, tecnicamente, não é adequado dizer que o Rio poderia decretar estado de falência. Isso não existe", declarou. O governador em exercício, Francisco Dornelles, afirmou, no entanto, em entrevista à revista "Época": "O Estado está falido".
A fim de entender o que poderia ou não acontecer com o Estado do Rio em um cenário de agravamento da crise, a reportagem do UOL conversou, com o secretário da Fazenda, com o desembargador federal Marcus Abraham, titular do TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região), e com a economista Vilma Pinto, pesquisadora de economia aplicada do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia), da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
O Estado pode decretar falência?
Especialista em direito financeiro, Abraham afirmou que a Constituição e a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) não permitem ao Estado o chamado "decreto de falência". A Lei de Falências, por sua vez, aplica-se apenas às empresas privadas. Por outro lado, caso a situação econômica do Rio venha a se tornar insustentável, o Rio poderia sofrer uma intervenção federal, o que está previsto nos artigos 34 e 35 da Constituição.
"A Legislação nada fala em falência. Tem-se utilizado isso no jargão, não apenas no Rio, mas também em outros Estados. No entanto, juridicamente isso não é possível", declarou ele, que é autor dos livros "Estado Fiscal e Tributação" e "Direito Financeiro na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal". "Falência é uma expressão comum, que dá uma ideia de que não está sendo possível cumprir com as obrigações financeiras. Mas, no âmbito jurídico, o que há de mais próximo é a hipótese de intervenção de um ente maior em relação a um ente menor, ou seja, da União em relação aos Estados, e dos Estados em relação aos municípios."
Já Vilma diz que, embora a falência não seja caracterizada pelo dispositivo legal, o "Estado do Rio já pode ser considerado falido". "O decreto de calamidade pública nada mais é do que isso. O governo deixou claro, dessa forma, que não consegue mais honrar todos os seus compromissos. Alguns credores não são pagos há meses", disse.
Durante anos pesquisando economia aplicada, eu nunca tinha visto um Estado chegar a esse ponto. Já tinha visto municípios, mas não Estados. Para mim, a falência foi constatada a partir do momento em que o governo se viu obrigado a decretar calamidade
Vilma Pinto, economista
O RJ está sujeito à intervenção federal?
De acordo com o texto constitucional, a intervenção é cabível para "reorganizar as finanças" da unidade federativa que "suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos seguidos, salvo motivo de força maior". Além disso, constam como obrigações do Executivo estadual: prover repasses aos municípios com base nas receitas tributárias fixadas pela Constituição e aplicação do mínimo obrigatório da receita nas áreas de educação e saúde.
O desembargador Abraham disse que a transferência de gestão para o governo federal, ainda que em caráter temporário, deve ser encarada como "último recurso". Ele lembrou que, em 2010, o então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, pediu intervenção federal no Distrito Federal, que à época enfrentava uma grave crise política, com denúncias de corrupção, formação de quadrilha, desvio de verbas públicas e fraude em licitações. O requerimento foi negado pelo STF. Nesta quarta-feira (14), governadores de 17 Estados do Norte e do Nordeste avisaram ao ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que decretarão estado de emergência na próxima segunda (19). Em reunião ocorrida em Brasília, eles reivindicaram a liberação de pelo menos R$ 7 bilhões para cobertura de perdas provocadas por incentivos concedidos pela União.
Na avaliação de Vilma, a hipótese de intervenção federal no Rio é remota, apesar de a crise ter "destruído o fluxo de caixa do Estado". "Não vai demorar para que o governo recorra novamente à União na tentativa de conseguir alguma liberação emergencial de recursos. Acho que partir para a intervenção federal seria uma medida extrema, não creio que isso vai acontecer."
Quem decide pela intervenção?
A intervenção pode ser imposta pelo Executivo federal ou determinada pelo Poder Judiciário. Somente no primeiro caso, o decreto é submetido à consulta dos Conselhos da República e de Defesa Nacional, sendo posteriormente enviado para apreciação do Congresso. O Legislativo e o próprio Estado em crise podem recorrer à Justiça para que seja aprovado um pedido de intervenção.
Questionado se, até o fim do ano, o governo do Estado poderia, de fato, cogitar a possibilidade de solicitar ou mesmo sofrer uma intervenção por parte da União, o secretário da Fazenda do Rio afirmou apenas que não consegue "enxergar essa situação". Já o desembargador disse "preferir não acreditar". "Como estudioso do direito financeiro, eu prefiro deixar essas hipóteses especulativas para o dia em que elas venham a se tornar concretas."
Há esperança de recuperação? O que o Estado está fazendo?
Além das ações de contingenciamento, como redução de despesas e cortes no orçamento, a recessão fez com que o Estado implementasse medidas para monetização de ativos a fim de conseguir "receitas extraordinárias". Um dos reflexos da crise, informou o secretário Gustavo Barbosa, foi a venda de imóveis públicos. Foram arrecadados quase R$ 30 milhões com esse tipo de operação.
A calamidade financeira do Rio levou a Secretaria da Fazenda a pedir, no dia 31 de agosto, cooperação técnica do Tesouro nacional. O Palácio Guanabara informou que a pasta solicitou o "envio de uma missão técnica para ajudar a reorganizar as contas estaduais". A União monitora o quadro do Rio, mas a equipe econômica já avisou que não tem mais dinheiro para repassar. A missão do Tesouro nacional não tem ainda data para desembarcar no Estado --os técnicos federais estão em greve por questões salariais-- nem prazo de conclusão do trabalho. "Eu falei para o Tesouro nacional que o Estado do Rio é um 'case' a ser estudado. O Tesouro do Estado do Rio não é o único nessa situação de penúria. A crise afeta a todos."
Vilma disse acreditar que o Estado só conseguirá sair da crise financeira se encontrar alternativas para ampliar ou elevar suas fontes de receita. Isso poderia acarretar, contudo, aumento de impostos. "A arrecadação própria dos Estados é baseada no ICMS, isto é, no comércio, enquanto os municípios têm como principal fonte de receita o ISS, imposto que incide sobre serviços. Acontece que a economia em geral é mais vocacionada para serviços, menos para o comércio. Por esse motivo, guardadas as devidas proporções, os Estados acabam sentindo a crise econômica de maneira mais intensa."
Pagamento de salários é prioridade
Com as dificuldades impostas pela crise financeira, o Estado elencou como prioridade o pagamento dos salários dos servidores, afirmou Gustavo Barbosa. Com as medidas de contingenciamento e o apoio federal, o Executivo conseguiu regularizar a folha de algumas categorias, principalmente na área de segurança pública. Policiais civis e militares, por exemplo, chegaram a ficar sem remuneração por quase dois meses. Profissionais da saúde e da educação também foram afetados.
"Como a segurança responde por 30% da folha de pagamento do Estado e é fatia importante do orçamento, a liberação de recursos que seriam deslocados para essa área possibilitou o cumprimento de outros compromissos financeiros, assegurando a finalização das obras do metrô antes do início da Olimpíada, o pagamento de fornecedores da saúde e o pagamento dos salários de servidores ativos, inativos e pensionistas no calendário estipulado", informou o governo, em nota.
Atualmente, a maior dificuldade tem sido a data de pagamento: o governo deveria fazer os depósitos até o terceiro dia do mês, mas eles só são feitos no décimo. "A gente depende do fluxo de caixa e da arrecadação para fazer esses pagamentos", afirmou o secretário.
Sem receita não dá para pagar os servidores
Gustavo Barbosa, secretário da Fazenda do Rio
Efeitos da crise
No primeiro semestre deste ano, além dos atrasos no pagamento dos salários de servidores, aposentados e pensionistas, a crise financeira no Rio provocou efeitos como o fechamento de hospitais --em especial de unidades estaduais como Albert Schweitzer (Realengo) e Rocha Faria (Campo Grande), que posteriormente foram municipalizadas-- e a interrupção do serviço de coleta de lixo em instituições como a Uerj (Universidade do Estado do Rio).
Além disso, as autoridades chegaram a suspender a perícia no IML (Instituto Médico-Legal) por falta de estrutura. Outros serviços, como Disque-Denúncia e restaurantes populares, também foram prejudicados. Na última semana, a ausência de recursos gerou mais um problema: a PM informou que os carros da corporação ficaram sem serviço de manutenção devido ao fim do contrato com uma empresa terceirizada. (Com Estadão Conteúdo)
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