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"Se a polícia é corrupta, não se vence a violência", diz especialista em segurança sobre intervenção no Rio

José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança - Arquivo pessoal
José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Imagem: Arquivo pessoal

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

17/02/2018 04h00

"Se você tem polícia corrupta, você não vence a violência. Elas estão mais ligadas do que você imagina. Quanto mais séria e íntegra for a polícia, mais capacidade ela tem de virar o jogo da violência."

Esta é a opinião de José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo e ex-secretário nacional de Segurança Pública, ao analisar a intervenção decretada pelo governo federal para a área de segurança no Estado do Rio de Janeiro.

De acordo com o ex-secretário, o Rio conta atualmente com cerca de 50 mil policiais militares e 10 mil da Polícia Civil. Devem ser acrescentados 8.000 integrantes das Forças Armadas ao efetivo, a partir da decisão de passar o controle da Segurança Pública fluminense ao general Walter Souza Braga Netto, interventor federal. O atual secretário de Segurança do Rio, Roberto Sá, colocou seu cargo à disposição.

Para José Vicente da Silva Filho, "já estava na hora de acontecer", mas a intervenção deve ter comando único das polícias e "tolerância zero" contínua no combate à corrupção policial. Sete anos atrás, em entrevista ao UOL, o cientista político Guaracy Mingardi, especialista em segurança pública na área de inteligência e análise criminal, crime organizado e corrupção, já fazia uma análise parecida: sem controle contínuo, corruptos voltam às polícias em um ou dois anos, afirmou.

UOL - Como o senhor avalia a intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro por parte do governo federal?

José Vicente da Silva Filho - É necessário porque a situação no Rio de Janeiro está se degradando muito e progressivamente. Mesmo com a entrada das Forças Armadas a partir de julho do ano passado, o problema continuou se agravando, com a dificuldade de integrar os esforços das forças federais com as polícias estaduais, militar e civil. Essa intervenção significa um aporte de recurso, de coordenação e de capacidade de gestão, que as forças do Rio de Janeiro mostraram que não têm. A capacidade do secretário estadual de Segurança se exauriu, era hora de fazer uma intervenção mesmo. Os mesmos remédios não estavam cuidando da doença.

Alguns estudiosos da área de segurança pública entendem que a intervenção é mais uma forma de dar sensação de segurança do que, na prática, resolver alguma coisa. O senhor acha que a força militar pode realmente mudar algo para a população nesse sentido?

Ela pode mudar mais do que se imagina. Não é uma questão de colocar tanques nas avenidas e na praia. O general que está assumindo o comando conhece a segurança do Rio, ele esteve em contato íntimo com esse instrumental de segurança por ocasião da Olimpíada. Ele coordenou a segurança e já vem realizando um bom diálogo com as polícias. Conhece, portanto, essa estrutura, e ele tem competência de planejamento e gestão, que estão faltando hoje no Rio de Janeiro. Há muita coisa a ser feita.

Um problema que o secretário Roberto Sá não deu conta é a desordem nas polícias Civil e Militar. O Rio de Janeiro tem 136 delegacias que cuidam da segurança do Estado. Em qualquer lugar do mundo, quem faz a contenção de parte da criminalidade é o que a gente chama de polícia territorial. Não é Rota, em São Paulo, não é Bope, no Rio. Eles fazem um esforço complementar para alguns problemas específicos.

Mas o dia a dia, que é o que importa para o Rio de Janeiro, quem faz é a delegacia. Não é a força armada que vai lá na Pavuna conter o roubo de cargas, é a delegacia da Pavuna que tem que cuidar disso. Mas as delegacias da Polícia Civil têm apenas um terço do efetivo da polícia, quando deveriam ter pelo menos dois terços, como em qualquer lugar do mundo. Para usar uma palavra da moda, é preciso empoderar as delegacias distritais, principalmente aquelas que atuam em áreas críticas.

Onde estão os outros dois terços dos policiais civis que poderiam estar nas delegacias distritais?

Boa pergunta... estão fora da prioridade, isso é evidente. Estão em número excessivo em delegacias especializadas, que consomem efetivo e não dão o resultado que uma delegacia distrital tem que dar.

Esta, a distrital, é a polícia que faz diferença para a população?

A Polícia Civil distrital e um grupamento compatível da PM, que deve trabalhar junto com a Civil. No Rio, existem as Áreas Integradas de Segurança Pública (Aisp). Cada Aisp tem uma ou duas delegacias e um contingente da PM, um batalhão. Essas unidades têm que ser fortalecidas, e elas foram enfraquecidas ao longo da gestão do José Beltrame [ex-secretário de Segurança do Rio] e depois na do Roberto Sá, porque se desviou muito recurso para as UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora]. Nas UPPs se utilizou um contingente policial dez vezes maior do que se usa normalmente. O prazo de validade delas acabou vencendo e não fizeram uma renovação de estratégia policial em cima das UPPs, que até certo momento foram favoráveis.

O Paulo Storani, um oficial da PM do Rio, disse hoje, mais cedo, que um batalhão em uma área importante, de 300 mil a 500 mil habitantes, estava com 200 policiais militares. Enquanto isso, uma área como a favela do Dona Marta, que tem 4.000 habitantes, tinha 130 PMs, quase o efetivo do batalhão de uma área cem vezes maior. Essas distorções vão ter que ser corrigidas agora.

Em 20% do Estado ou da cidade do Rio de Janeiro, você tem 80% dos crimes concentrados. À medida que se coloquem recursos de qualidade nesses locais, como escolher melhor delegados, o major, o capitão etc., e que se concentre em uma gestão para planejamento, constância e busca de resultado, você vai alcançar resultados, sim. Isso pode ir acontecendo em um prazo relativamente curto.

Paralelamente às ações de curto prazo, outras ações vão ter que ser feitas em termos de preparar o aparato de segurança do Estado para entregá-lo um pouquinho melhor para o próximo governo.

Vai haver tempo suficiente para isso, com menos de um ano para a troca do governo?

Dá para fazer muita coisa. Não vai haver uma revolução na segurança do Rio, mas já vai dar para começar alguma coisa. O que, do contrário, não aconteceria. É necessário um programa bem feito e retreinamento das polícias.

A corrupção policial pode ser um problema?

Tem que começar a cuidar disso e declarar tolerância zero à corrupção na polícia. Se você tem polícia corrupta, você não vence a violência. Elas estão mais ligadas do que você imagina. Quanto mais séria e íntegra for a polícia, mais capacidade ela tem de virar o jogo da violência.

Fazendo um parêntesis sobre isso, quando houve uma retomada da segurança na Colômbia, em cidades como Cali, Bogotá e Medellín, que tinham picos de violência, o general Óscar Naranjo, da Polícia Nacional [e atual vice-presidente do país], teve o cuidado de reformular a polícia. Ele conseguiu uma lei, negociando às pressas com o Congresso, para facilitar a expulsão dos maus policiais. No Peru, que teve um problema sério de violência durante e depois do Sendero Luminoso, eles fizeram uma unificação da polícia para poder dar andamento na segurança do país. Pura e simplesmente policiamento e pregação de ação social e coisas desse tipo não resolvem.

No caso do Rio de Janeiro, o que estava acontecendo até hoje é que não havia uma coordenação dessas forças federais e estaduais. Você tem um duplo comando. Se eu tenho uma rebelião em um presídio, não pode haver duas pessoas comandando. A área de crise precisa ter um comando só para dar as regras do jogo à coordenação.

Essa duplicidade acontecia por falha de estratégia ou por uma certa disputa entre as polícias no Rio?

É uma coisa natural a disputa de poder, por isso que unificaram a polícia do Peru e as polícias da Áustria, assim como deveria haver uma polícia única no Brasil. Para contexto de crise, não dá para fazer pacto de pessoas em pontos diferentes, é necessário ter um comando só.

A gente imagina que o estafe que vai acompanhar o general será um estafe de confiança dele. Não sei até que ponto ele vai manter os principais comandantes de Bombeiros, PM, Polícia Civil do Estado do Rio e o próprio secretário da Segurança. Como é uma estrutura atípica, é a primeira vez que se aplica no Brasil, esse modelo está sendo fundado agora. Ele vai ser um supersecretário da Segurança, um interventor ou algo um pouco acima disso? Como é que ele vai negociar algumas questões com o governador? A designação de comandante da PM e da Polícia Civil tem que passar por decreto do governador, por exemplo. Essa negociação vai ser experimentada também.

O senhor acha que pode ocorrer uma reação dos policiais nessa adaptação a um novo comando militar?

Isso pode acontecer. Mas, como o interventor vem de um diálogo intenso com as duas polícias ao longo desse último semestre, ele já cimentou essas pontes de diálogo com as instituições. É bem provável que ele vá buscar para chefiar essas entidades aqueles policiais que têm uma efetiva liderança sobre seus comandados. Ele vai precisar dessa força dentro das polícias para poder viabilizar as ações dele.

Por que a violência no Rio de Janeiro e a questão da segurança pública nunca se resolvem?

É porque não se procura resolver. Estou vendo notícias do prefeito [Marcelo Crivella, PRB] na Suécia, na Áustria. O prefeito foi até lá buscar soluções para a segurança. Cheguei a fazer uma consultoria [para o governo] quando o Anthony Garotinho (PR) era secretário da Segurança e a mulher dele [Rosinha Garotinho, PR] era governadora. Essas mazelas do Rio de Janeiro não foram cuidadas, e já sabiam disso.

A altíssima taxa de corrupção na polícia, principalmente na PM, já era visível naquela época. Sucessivas operações, inclusive da Polícia Federal, prenderam capitães, majores, coronéis envolvidos com o crime. No entanto, essa questão não foi resolvida. O Rio tem alguns problemas sintomáticos de falta de supervisão policial. Todo soldado é promovido automaticamente a sargento, e você não faz uma preparação de supervisor, que é uma função importante de um sargento. Essas mazelas continuam e não são reparadas ao longo do tempo. Nós tivemos, inclusive na gestão do Beltrame, a mudança de comando da PM todo ano. Não tinha continuidade na ação do comando da PM.

Por que essa intervenção está acontecendo no Rio de Janeiro e não em Estados do Nordeste, por exemplo, que têm violência alta?

A violência do Rio tem um pacote de caraterísticas que caracterizam bem a crise de segurança. Não é só a quantidade de homicídios. O Ceará, por exemplo, tem mais homicídios do que o Rio. No Rio, você tem aquilo que se considera um dos pontos mais críticos de segurança pública em qualquer localidade do mundo: comunidades dominadas por criminosos. No Rio, já se falou em até 800 comunidades controladas pelo crime, onde o poder não é do Estado, é da lei da força bruta, de facções criminosas, traficantes e milícias.

Outro aspecto é que você tem facções num determinado espaço, no caso, a cidade do Rio de Janeiro, com muitas armas de guerra. Isso eu só vi na Colômbia na época em que as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) estavam atuando. Um comandante da PM, em entrevista à imprensa, estimou que havia pelo menos 3.000 fuzis de guerra nas mãos de criminosos no Rio, que é o efetivo de uma brigada de Exército. É muita arma, e ela está tão banalizada que começa a aparecer em pequenos assaltos de rua. Essa é uma característica do potencial ofensivo dos criminosos do Rio de Janeiro, isso não tem no Ceará nem em São Paulo.