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Moradores de rua são condenados a multa e prisão por reagirem a ação da GCM em SP

Everton Batista dos Santos (à esq.) e Henrique Marcondes - Reprodução
Everton Batista dos Santos (à esq.) e Henrique Marcondes Imagem: Reprodução

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

30/08/2018 04h00

A resistência a uma abordagem executada no âmbito do programa Cidade Linda, da Prefeitura de São Paulo, custou a dois moradores de rua da capital uma condenação à prisão e ao pagamento de multa impostos pela justiça paulista. É a primeira condenação do tipo relacionada ao programa, voltado à zeladoria urbana e uma das principais bandeiras de gestão do ex-prefeito João Doria (PSDB), que renunciou ao mandato em abril para disputar o governo do estado.

A sentença do último dia 22, assinada pela juíza da 17ª Vara Criminal da capital Carla Santos Balestreri diz respeito à forma como os desempregados Henrique Marcondes Alves, 24, e Everton Batista dos Santos, 33, reagiram à abordagem de dois agentes da GCM (Guarda Civil Metropolitana) em julho do ano passado durante ação de apoio da corporação à gestão municipal.

De acordo com a denúncia apresentada pelo Ministério Público, Alves e Santos teriam reagido com desacato e violência à solicitação feita por dois GCMs, em ação pelo Cidade Linda, para que desmontassem as barracas onde dormiam e que servia a eles de moradia improvisada. O caso foi registrado em um viaduto da avenida Nove de Julho já próximo à rua Avanhandava, um dos redutos de turismo gastronômico de São Paulo, na região central da cidade.

Segundo denúncia apresentada pela promotora substituta Celisa Ágata Lopes Mota, Alves e Santos teriam também chutado a porta do veículo oficial dos GCMs – o que os qualificaria a responder pelo crime de dano qualificado ao patrimônio --, além de representarem “grave ameaça a funcionário público”, uma vez que teriam agredido os agentes e incitado populares a também reagirem. Como a parte reclamante é a GCM e o dano material apontado fora registrado pela corporação, a Prefeitura de São Paulo figura no processo como vítima no boletim de ocorrência na Polícia Civil.

Únicas testemunhas no processo são GCMs

Tanto o inquérito policial quanto a denúncia da promotora e a sentença da juíza usam como argumentos os relatos das duas únicas testemunhas da ocorrência: os dois GCMs.

Eles relataram a necessidade do uso de algemas nos dois homens porque eles teriam reagido à prisão, ordenada na abordagem após xingamentos e os supostos chutes na porta do carro. Santos, segundo o relato dos dois agentes, ainda os teria agredido e teria se ferido sozinho, no supercílio, ao cair no chão.

À polícia durante o registro do flagrante, no entanto, Alves relatou que estava dormindo em sua barraca quando os GCMs “o acordaram com chutes”, razão pela qual ele “se levantou nervoso e por isso chutou a viatura, danificando-a”. O morador de rua alegou ainda “ter sido ameaçado pelos guardas.”

Santos, por sua vez, alegou que estava dentro da barraca quando os guardas pediram que ele a desmontasse. Ao se recusar, narrou, “foi imobilizado e arrastado pelos guardas”, que “causaram lesão em seu supercílio e na perna”.

Nos autos, embora tenha sido requerido durante a instrução do processo, não houve a realização de perícia no veículo danificado – apenas uma foto, em preto e branco, apontando o dano.

A foto da viatura da GCM contida no processo - Reprodução - Reprodução
A foto do veículo da GCM contida no processo
Imagem: Reprodução

Condenações a semiaberto a multas

A juíza condenou Alves a sete meses e 23 dias de prisão, mais o pagamento de 11 dias-multa (R$ 349,80), e Santos a um ano, seis meses e 20 dias, além de 13 dias-multa (R$ 413,40). Ambos foram sentenciados ao regime semiaberto e nos valores mínimos de dias-multa (ou seja, 1/30 do salário mínimo o dia), mas Alves foi condenado apenas pelo dano ao automóvel.

“A materialidade delitiva está comprovada pelo auto de prisão em flagrante, pelo boletim de ocorrência e pela imagem da viatura danifica em sua porta dianteira esquerda”, escreveu a magistrada na sentença. Ela sublinhou: “Muito embora não tenha sido confeccionado laudo quanto à viatura danificada, o crime de dano qualificado restou caracterizado, tanto pela prova oral colhida em juízo quanto pela fotografia”.

Os réus já estão presos devido a outros processos – Alves, por uma lesão corporal, e Santos, por tráfico de drogas. No caso da abordagem pela GCM, ambos são defendidos pela Defensoria Pública do Estado.

Defensoria vai recorrer; companheira relata agressões

Ao UOL, o defensor público Eduardo Jácomo Teixeira afirmou que apresentará um recurso de apelação ao Tribunal de Justiça a fim de que a condenação de ambos os moradores de rua seja, ao menos, abrandada.

“A prova técnica não pode ser substituída por nenhuma outra. A viatura supostamente danificada precisa de laudo pericial; por ora, o que se tem é relato dos guardas e uma foto em preto e branco do carro”, disse.

Para o defensor público, a condenação “foi bem desproporcional em ambos os casos”. “Avaliamos que, nessas situações, uma pena alternativa seria muito melhor e mais adequada para a própria prevenção desses delitos – traria muito mais benefícios a todos do que simplesmente mantê-los presos”, disse. “A prisão não vai ajudá-los”, concluiu.

Michelly (à esq.) e Henrique - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Michelly (à esq.) e Henrique
Imagem: Arquivo pessoal

Companheira de Alves nas ruas há quatro anos, Michelly David Alves, 23, contou que estava com ele na barraca no dia da abordagem. “Os guardas chegaram chutando as barracas. O Henrique levantou bravo, e aí começaram a discutir. Quando vi, estavam todos saindo na mão”, disse.

"Os guardas implicavam com a gente ali fazia um tempinho, diziam que não podia armar barraca na rua", lembrou ela. "Acho um absurdo ele estar preso, com gente que fez coisas tão piores solta por aí”, criticou. “Não tem justiça nenhuma para quem está em uma situação como a nossa. Fico triste, é difícil aceitar esse tipo de realidade."

Única parente a visitar morador de rua na cadeia é a avó

Além de Michelly, a única familiar a visitar Alves na prisão, o CDP (Centro de Detenção Provisória) de Pinheiros (zona oeste), é a avó dele, a pensionista Miralva dos Reis Marcondes, 62. Ela contou que o neto é ex-usuário de drogas e já ficou internado em três clínicas, mas que “era muito vaidoso e ajudava a mãe, com as despesas de casa”, quando trabalhava e estava longe do vício.

Sobre as visitas que faz ao neto, aos fins de semana, Miralva disse que ele “está sofrendo muito”. “Quando eu vou embora, ele chora muito, diz que a saudade dói demais. Como ele tem relacionamento com a trans, os pais dele não aceitam e ninguém acaba indo visitar ele na cadeia, só eu. Vou abandonar ele por causa disso? Não tem como. Anda mais que essa Michelly ajudou ele a sair das drogas”, afirmou, desanimada com a sentença do neto. “Sete meses, para uma avó, são como sete anos”, desabafou.

A reportagem não conseguiu localizar parentes de Santos, condenado junto com Alves. Além de tráfico, crime pelo qual está preso desde março deste ano, segundo o TJ, Santos tem passagens também por roubo.

"Violar viatura importa mais que agressão a uma pessoa" 

O coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Igreja Católica, padre Júlio Lancelotti, lamentou a condenação dos dois moradores de rua e a considerou “desproporcional”.

“Ver que as pessoas em situação de rua têm saqueados seus poucos bens que servem de moradia, são expulsas e não podem reagir a isso é constatar que, a despeito de toda a vulnerabilidade em que estão, elas ainda têm que ter uma resiliência e uma passividade completa”, disse. “Qualquer pessoa nessa situação, qualquer um de nós, teria uma reação –e é uma reação quase que instintiva, quando o mínimo que se tem para sobreviver é tirado de si”, constatou.

O religioso contou que conhece Alves, já que ele teria passado por centros de acolhida municipais. “Ele está sofrendo muito na prisão. Mas a impressão é que violar um objeto, como uma viatura, importa mais que a agressão a uma pessoa vulnerável”, definiu.

Procurada sobre a condenação e sobre a conduta dos GCMs envolvidos na ação, a Prefeitura informou que não comentaria o teor da decisão. Sobre os relatos de agressão por parte dos guardas, a informação é que, como eles figuraram como vítimas, não houve abertura de procedimento sobre a conduta deles na ocasião.