Ação da PM no Fervo da Lud teve falhas e excesso de força, dizem analistas
Especialistas em segurança pública ouvidos pelo UOL condenaram o que consideraram uso desproporcional da força por parte de policiais militares na confusão que encerrou mais cedo o bloco Fervo da Lud, comandando pela cantora Ludmilla, na última terça-feira (5) no centro do Rio de Janeiro.
Além de falhas na atuação da polícia, que fez uso de bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta, eles apontaram que o local (a avenida Antônio Carlos) é inadequado para um evento com cerca de 1,5 milhão de pessoas por não oferecer a possibilidade de dispersão --a via é cercada de prédios.
A confusão teria começado após uma briga no meio do público. Para conter o tumulto, os PMs lançaram bombas de efeito moral ao que foliões reagiram lançando garrafas. Em seguida, um folião provocou agentes com uma barra de ferro. Diversos policiais cercaram o homem, que não teve a identidade revelada, e o agrediram com cassetetes.
Bastante machucado, ele foi levado de ambulância para o hospital Souza Aguiar, acompanhado por cinco policiais. O UOL procurou a Secretaria Municipal de Saúde e as polícias Militar e Civil, mas não obteve informações sobre o estado de saúde dele ou se o homem chegou a ser conduzido a uma delegacia após atendimento. Quatro PMs feridos na confusão foram atendidos no hospital da Polícia Militar.
Procuradas para comentar os protocolos de ação do policiamento no bloco, a Polícia Militar, a Corregedoria da PM e a Secretaria de Estado da Segurança não responderam aos questionamentos do UOL até a publicação desta reportagem.
A ação que provocou dezenas de atendimentos em dois postos médicos --a maioria por cortes ou traumas diversos e inalação de gás lacrimogêneo-- foi questionada por especialistas em segurança pública. Eles apontaram que:
- Houve uso desproporcional da força;
- Por ser cercado de prédios, o local não tinha vazão para dispersão;
- Gás lacrimogêneo não deveria ser usado neste local justamente pela falta de saídas para dispersão;
- Os policiais que ali estavam precisavam do apoio de tropas mais experientes em debelar confusões, como o Choque ou Recom (Rondas Especiais e Controle de Multidões, geralmente acionadas para estádios de jogos de futebol);
Uso excessivo da força
Para Renato Sérgio de Lima, que integra o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve "explicitamente o uso excessivo da força".
"Mesmo quando ele [o folião] reagiu e provocou, a polícia não pode fazer a mesma coisa para combater o crime e a violência. Cercar não é problema, cassetete até pode ser utilizado, mas o procedimento correto seria imobilizar, algemar e conduzir o suspeito para a delegacia", avaliou o professor do Departamento de Gestão Pública da FGV (Fundação Getúlio Vargas). "Houve uso desproporcional da força, em termos técnicos", completou.
Segundo Lima, a ação requer tanto a instauração de sindicância pela Polícia Militar como a revisão de procedimentos por parte do comando. "O policial precisa ter capacidade de reagir de acordo com os protocolos adequados e não pode perder controle nas situações. Eles vão ser xingados, vão ser hostilizados e precisam reagir com autocontrole sobre isso. Como essa agressão com vários cassetetes foi em grupo, isso mostra falta de comando na situação", afirmou.
Para ele, o mesmo se aplica ao uso de bombas de efeito moral na multidão. "A meu ver, houve uma clara falta de supervisão. Os policiais não eram da Tropa de Choque, que é a mais preparada para conter civis", observou.
"Não se pode deixar uma aglomeração sem saída. Caso isso ocorra, pode provocar pisoteamento. Para se fazer o controle, é preciso ter os recursos necessários", continuou. "Houve falta de preparo dos policiais da ponta, que se excederam quanto ao uso da violência. Isso tudo denotou falta de controle e supervisão", apontou o especialista.
A partir dessa análise, Lima elaborou três questionamentos: a polícia tinha os recursos suficientes para controlar o conflito? O policiamento de choque estava por perto para isso? O protocolo de controle de distúrbios civis foi adotado? Eles foram encaminhados, juntamente com as críticas dos analistas, à PM, à Corregedoria da PM e à Secretaria de Segurança, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Local sem dispersão
Ex-capitão da PM do Rio e especialista em segurança pública, Paulo Storani apontou que o maior erro foi a localização do evento.
"Para começar, o evento não deveria existir. Eram 1 milhão de pessoas em um local inadequado. Isso é a média da população na virada do ano ao longo da extensão da orla de Copacabana. Colocaram todas essas pessoas concentradas em um espaço cercado por prédios sem a possibilidade de dispersão. Não existe estrutura policial que possa atuar em uma situação como essa", avaliou Storani.
Ele aponta que a situação era muito difícil para os PMs que ali estavam. "Policiais são seres humanos, não máquinas programadas. Chegaram até ali, houve resistência, eles tinham que agir o mais rápido possível para cessar a confusão e para que ela não aumentasse, ampliando o risco àquelas pessoas presentes no bloco", ponderou.
Storani defende que blocos sejam alocados em lugares mais apropriados, como o Parque Olímpico, na zona oeste carioca. Segundo ele, espaços controlados são mais seguros. "Se alguém tem um mal súbito ali no meio, como a ambulância vai chegar?", questionou.
O ex-capitão da PM discordou também do uso de bombas de gás lacrimogêneo. "Infelizmente, os policiais presentes não eram especializados em controle de grandes distúrbios, como a Tropa de Choque ou o Recom."
Ele defende que PMs tenham acesso a treinamento específico para esse tipo de ocorrência. "As bombas de efeito moral fazem com que se perca a noção de direção e o que se deva fazer. As pessoas podem ser pisoteadas", observou.
"Despreparo e desorganização"
Para José Vicente Filho, ex-secretário nacional da Segurança Pública e coronel da reserva da PM, duas palavras definem a confusão: despreparo e desorganização.
"Quando acontece uma situação em que o indivíduo agride policiais, ele precisa ser imobilizado --não a golpes de cassetete, mas com golpes marciais. Em seguida, o indivíduo deve ser conduzido para a unidade policial", avaliou.
José Vicente também apontou despreparo da PM para o bloco. "Uma polícia preparada e organizada sabe que 2 milhões de pessoas denotam uma potencial tragédia. Pessoas podem ser esmagadas e morrer por causa disso", analisou.
Ele indicou que as autoridades de segurança do Rio precisam planejar melhor o Carnaval devido a adesões maciças e sugere as seguintes medidas:
- Planejamento, com duração mínima de uma semana, entre prefeitura, polícia e bombeiros sobre eventuais problemas;
- Escolha de locais sem viadutos e com muitas vias para escoamento de multidões;
- Opção por boa localização de serviços de banheiro e ambulâncias;
- Restrição à venda de bebidas alcoólicas;
- Montagem de observatórios elevados no solo ou em prédios e uso de drones e helicópteros;
- Uso de tropas adicionais para efetuar revistas e controles de acesso ao local
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