Apreensões de cocaína chegam a valores equivalentes ao topo da exportação

Era início de fevereiro quando fiscais da Receita Federal que trabalham no porto de Natal receberam a informação de que uma carga de mangas que estava prestes a ser enviada à Holanda continha, na verdade, muito mais do que apenas frutas para exportação. Eles resolveram, então, verificar pessoalmente o conteúdo do contêiner. Encontraram dentro dele duas toneladas de cocaína.

A droga também tinha a Holanda como destino. Lá, poderia ser vendida, no atacado, por até R$ 270 milhões. Ou seja, cada quilo da cocaína apreendida valeria R$ 135 mil, cerca de US$ 35 mil.

O alto valor da cocaína no mercado internacional transformou o tráfico da droga via portos num negócio bilionário. De acordo com a PF (Polícia Federal), só no porto de Natal, por exemplo, foram apreendidas 4,3 toneladas do entorpecente nos primeiros seis meses de 2019, incluindo os tabletes encontrados na carga de manga.

Levando em conta as estimativas do preço da droga adotadas pela Receita Federal, PRF (Polícia Rodoviária Federal) e também pelo UNDOC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, na sigla em inglês), isso quer dizer que até US$ 150 milhões em cocaína foram apreendidas neste único porto só no primeiro semestre do ano. Com o dólar cotado a cerca de R$ 3,90, são mais de R$ 588 milhões em cocaína.

Para se ter uma ideia do que o mercado ilegal da droga representa, caso toda essa cocaína apreendida fosse mesmo exportada e contabilizada, sua movimentação representaria o principal produto exportado pelo porto de Natal de janeiro a junho de 2019. A hipotética exportação da droga apreendida geraria mais receita do que a venda de aviões ou helicópteros (R$ 274 milhões), máquinas (R$ 102 milhões), e os vários tipos de frutas embarcadas para a Europa do terminal.

Essa comparação não leva em conta a cocaína não detectada na fiscalização. Não há no Brasil estimativas confiáveis a movimentação de droga além dos números das apreensões feitas autoridades.

Especialistas, contudo, apontam o montante apreendido não é chega a comprometer tráfico. "Não há notícias de que está faltando cocaína no mundo", afirmou o advogado Cristiano Avila Maronna, secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas. "Apesar das apreensões, ainda há droga circulando no Brasil e passando pelos portos."

Total de cocaína apreendida em 2018: zero

No porto de Natal, em 2018, nenhum grama de cocaína foi apreendido por autoridades. Neste ano, as apreensões chamaram tanta atenção que a exportação de frutas chegou a ser suspensa em fevereiro.

A suspensão foi uma decisão da CMA CGM, empresa francesa que explora a rota marítima de exportação de frutas do Brasil para a Europa. À época, a empresa disse que a decisão havia sido tomada por conta do risco da inclusão de entorpecentes em suas cargas.

Uma comissão composta por órgãos do governo foi montada para discutir medidas para aumentar a segurança do porto. Em abril, as exportações de frutas para a Europa foram retomadas.

No início de julho, a PF, a Receita e outros órgãos de controle deflagraram a operação Pele de Sapo. A ação teve como objetivo desmantelar o grupo que atua na exportação de drogas usando o porto.

A Codern (Companhia Docas do Rio Grande do Norte), que administra o porto de Natal, informou que tem colaborado com a fiscalização. A empresa afirmou que "é fato que o Rio Grande do Norte passou a ser uma rota internacional do tráfico de drogas". A companhia diz que as apreensões podem fazer com que o estado saia da rota.

R$ 1 bilhão em Paranaguá

Já no porto de Paranaguá, no Paraná, ações da PF e da Receita resultaram na apreensão de 7,9 toneladas de cocaína nos seis primeiros meses do ano.
Essa quantidade é 67% maior do que todo o volume da droga apreendida durante todo o ano passado (4,7 toneladas). Só o apreendido em 2019 poderia ainda ser vendido por mais de R$ 1,08 bilhão no exterior.

Se essa exportação fosse contabilizada, a droga seria o sétimo produto em valor exportado no porto de Paranaguá no período. No terminal, o maior do tipo graneleiro de toda a América Latina, a exportação da cocaína seria equivalente à venda de óleo de soja (R$ 1,03 bilhão) e maior que a de açúcar (R$ 940 milhões), por exemplo. Pouco abaixo do valor do milho exportado (R$ 1,2 bilhão).

O major da Polícia Militar, César Kamakawa, chefe de segurança portuária dos Portos do Paraná, estatal que administra o porto de Paranaguá, informou que a segurança do terminal tem sido reforçada para coibir o tráfico. Equipamentos eletrônicos auxiliam na fiscalização, que já conta com escaneamento de cargas -o que não existe no porto de Natal.

Para Kamakawa, obviamente, o porto não deveria ser utilizado pelo tráfico. Apesar disso, ele espera que as apreensões de droga fiquem ainda maiores.

Santos é líder em apreensões

No Porto de Santos, em São Paulo, a PF apreendeu de janeiro a junho 13,2 toneladas de cocaína --a maior quantidade em portos brasileiros. Esse volume de droga poderia ser vendido por R$ 1,8 bilhão. O valor, contudo, não chegaria a representar grande fatia das exportações totais do terminal, que serviu para o envio de mais de R$ 119 bilhões em produtos ao exterior no primeiro semestre, segundo a Receita Federal.

O professor do Instituto de Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo), Leandro Piquet Carneiro, especialista em questões de segurança, ratifica que é impossível dizer se a cocaína apreendida no porto de Santos -ou outros portos-- representa toda a droga que chegou até ali.

Ele, aliás, critica a falta de transparência das autoridades sobre o assunto.

"Sem dados confiáveis, a política pública sobre droga se baseia no palpite", disse. "É óbvio que há a droga apreendida e a droga que escapa da fiscalização. A transparência das autoridades sobre o assunto ajudaria no enfrentamento do problema."

O professor disse também que, independentemente da quantidade de droga presa em fiscalizações, o poder econômico das organizações responsáveis pelo tráfico segue praticamente inalterado. Isso porque a apreensão é logo compensada por um aumento de preço, garantindo a lucratividade daqueles que operam o comércio ilegal.

"A destruição de uma tonelada de cocaína valoriza a tonelada que escapou da fiscalização", explicou Carneiro. "Mesmo com as apreensões, o valor que o traficante obtém, no longo prazo, segue praticamente o mesmo."

Para Maronna, da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, o lucro do tráfico de drogas no Brasil acaba nas mãos de facções criminosas. Desta forma, o tráfico, além de fortalecê-las, fomenta a violência no país.

"A disputa pelo mercado da droga gera muitas mortes", disse. "O lucro desse mercado fortalece as facções e também serve para financiar um assalto como o do aeroporto de Guarulhos [que resultou no roubo de 720 quilos de ouro]. Os ladrões investiram R$ 1 milhão para poderem fazer esse roubo. De onde veio esse dinheiro? De uma facção, claro."

Segundo o advogado Rodrigo Mesquita, membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, a solução para esse problema passa pela regulação do mercado das drogas.

"A proibição das drogas não funcionou. Apesar das apreensões, o tráfico ainda acontece", afirmou Mesquita. "É um mercado que movimenta muito dinheiro. Poderia ser regulado pelo Estado para que seus danos sociais e da saúde dos usuários fosse minimizado."

Fiscalização reforçada

Procurada pelo UOL, a PF repassou os dados sobre apreensões de drogas em portos do país, mas informou não ter estimativas sobre a quantidade de droga que escapa das fiscalizações e acaba efetivamente exportada em portos do país. O órgão também não se pronunciou sobre o trabalho de fiscalização que tem realizado nos terminais.

Apesar disso, além da operação em Natal, a PF já realizou neste ano outras operações de combate ao tráfico de drogas em portos brasileiros. No início de julho, por exemplo, prendeu dois italianos suspeitos de trabalhar para a máfia daquele país. Os dois foram presos em Praia Grande (SP). Seriam integrantes do grupo chamado 'Ndrangheta, o qual seria o responsável por controlar 40% do mercado global de cocaína.

Reportagem do UOL revelou que investigações apontam que a 'Ndrangheta fechou acordos com o PCC (Primeiro Comando da Capital) para exportar drogas via porto de Paranaguá e Santos.

O superintendente da PF no Paraná, delegado Luciano Flores, afirmou em entrevista coletiva após a prisão dos italianos que as grandes apreensões de cocaína nos portos estão ligadas a atividades de facções criminosas e seus negócios com a Europa. "Estão havendo grandes apreensões, recordes históricos. Certamente isso envolve facções da América do Sul com organizações da Europa", disse ele.

A Receita Federal, que atua com a PF em diversas operações contra o tráfico de drogas em portos, informou que a quantidade de cocaína apreendidas em portos do país de janeiro a junho deste ano é 143% maior do que no mesmo período do ano passado. De 10,6 toneladas da droga em 2018, passou para 24,8 toneladas em 2019.

O órgão também não tem estimativas sobre o volume de droga de escapa de suas fiscalizações.

Para a Receita, o aumento das apreensões se deve a uma evolução do controle, vigilância e repressão adotados pelo órgão. O aumento das apreensões também está ligado à integração do trabalho da Receita com outros órgãos, como a própria PF, e o uso de tecnologia para fiscalização das cargas.