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Com 7 mortes em 2019, índios viram alvo de facções em ocupações de Manaus

Humberto Peixoto, 37, indígena - Arquidiocese de Manaus
Humberto Peixoto, 37, indígena Imagem: Arquidiocese de Manaus

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

17/12/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Sete indígenas foram mortos neste ano na capital do Amazonas
  • Três mortes aconteceram em um local conhecido como "Cemitério dos Índios"

O indígena Humberto Peixoto, 37, voltava para casa na tarde do último dia 2 quando foi surpreendido por homens que o espancaram, deixando-o com afundamento e perfuração do crânio, e fratura no fêmur. Um dia depois, ele teve morte encefálica diagnosticada, e seu coração parou de bater na manhã do dia 7.

Humberto era indígena do povo Tuiuca e foi o sétimo indígena —o quarto líder— morto na cidade de Manaus somente neste ano. Segundo o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), as quatro lideranças mortas eram vítimas do mesmo perfil: "indígenas que viviam em bairros da periferia ou em ocupações da cidade de Manaus com forte presença do narcotráfico."

Manaus é uma cidade marcada por ocupações irregulares que, nos últimos anos, passaram a sofrer com a chegada de facções que controlam o tráfico de drogas na periferia da cidade, com destaque para o crescimento de FDN (Família do Norte).

Segundo a Arquidiocese de Manaus, Humberto trabalhava na Cáritas Arquidiocesana e assessorava a Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro. Nunca houve qualquer relato de envolvimento dele com drogas ou crime.

"Na verdade, a gente ainda não tem muito entendimento do motivo dessas mortes, mas estamos pressionando o poder público pelas explicações", conta o coordenador da Copime (Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno), Turí Sateré.

Em Manaus, segundo a entidade, existem em torno de 20 mil indígenas vivendo em todos os bairros. O número exato está sendo feito em um levantamento que está em andamento.

"Cemitério dos Índios" lidera mortes

Três das mortes que ocorreram eram integrantes da ocupação chamada "Cemitério dos Índios." A área pertence à União e fica no bairro Nova Cidade, zona norte de Manaus, e é um sítio arqueológico.

Indígenas ocuparam o local em fevereiro de 2018, onde alegam que descansam seus ancestrais. Segundo apurou o UOL, familiares relataram que as mortes ocorreram porque as lideranças se recusaram a atender ordens de traficantes.

Três das mortes que ocorreram eram integrantes da ocupação chamada ?Cemitério dos Índios.? A área pertence à União e fica no bairro Nova Cidade, zona norte de Manaus, e é um sítio arqueológico  - SSP-AM - SSP-AM
O "Cemitério dos Índios"
Imagem: SSP-AM

Uma das mortes ocorreu em 13 de junho. A vítima foi o cacique da etnia Mura, Willame Machado Alencar, 42, conhecido como "Onça Preta". Ele foi morto com cinco tiros na comunidade.

"Onde ele mora só tem caminhos, não tem rua. Lá existe junto com o tráfico —que está na verdade está na periferia", diz Turí Sateré, citando grande preocupação dos povos indígenas da capital.

"A gente quer visibilizar essas mortes, não quer deixar elas impunes. A Justiça tem que dar uma resposta. As informações que temos é que não tinham envolvimento com droga ou com crime; mas eram lideranças que atuavam principalmente nessa questão das ocupações indígenas", diz. "A polícia tem de se manifestar quanto a essas mortes porque podem vir outras e outras mortes. A população está insegura por conta desses ataques."

Para ele, o problema de habitação é crônico no estado, o que levou a problemas na ocupação. Em 2015, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Amazonas tinha um déficit de 128 mil unidades habitacionais.

"Manaus cresceu à base da ocupação, da invasão. A maioria da população se encontra na periferia. manaus nunca tinha planejamento urbanístico. Nessa ocupação tem vários artistas dividindo espaço: tem gente do tráfico e tem lideranças.

"Preconceito judicial"

Em meio aos problemas habitacionais, lideranças reclamam que sofrem também com preconceito. Um deles falou que os povos estão sendo "criminalizados, processados e humilhados". "Eles acusam de comandar invasão a mando da facção", diz.

O cacique José Augusto, da comunidade Nações Indígenas, em Manaus, confirma que há um tipo preconceito institucional contra os índios. "O Poder Judiciário tem agido de uma forma discriminatória, prejudicando a ação da das lideranças indígenas no estado, tirando direito dos verdadeiros povos daqui, que somos nós", diz.

"Posso dizer, como liderança dessa dessa comunidade, que sofremos muito psicologicamente por pressão da Justiça, que tenta nos tirar o direito de ter uma moradia digna no Amazonas Estamos nessa frente de luta e vamos resistir para existir. Jamais vamos deixar de lutar, até que a morte nos leve", argumenta.

Ele também diz que os governos não apoiam causas indígenas. "Eles nos decepcionam, nos discriminam, têm preconceito conosco. E por essas razões os povos indígenas vivem lutando moradia. Nós estamos aqui em Manaus numa área urbano, e creio que isso é um dos motivos que vem causando essas mortes", diz.

Busca por melhores condições

Segundo Felipe Jucá, mestre em antropologia social pela Ufam (Universidade Federal do amazonas) e pesquisador do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, muitos indígenas deixam o interior e migram para capital por conta do esquecimento do poder público a que são impostos.

"Em Manaus há algumas ocupações conhecidas por serem articuladas por lideranças e habitadas por indígenas, que vêm do interior e não encontram condições de moradia na capital", diz. "Com a ausência de políticas públicas de moradia, essa população acaba em áreas de periferia que são mais expostas à violência urbana."

Um exemplo, diz, é o município de São Gabriel da Cachoeira (considerada a mais indígena do país, formada 90% por índios), que perde moradores para a capital. "Os índios saem das comunidades e vão para a cidade para trabalhar ou estudar, mas chegam e encontram essas dificuldades da vida inserida em outro modelo econômico", explica.

Em meio a uma dura realidade de periferia, com a convivência com a falta e serviços públicos,os indígenas só tornam mais vulneráveis. "O estado tem sacrificado direitos sociais, e a não inclusão dos indígenas —que já era uma realidade— parece ser agravada. Nesse cenário, acredito que um indígena esteja mais vulnerável que eu, por exemplo, embora estejamos na mesma cidade", explica.

Sobre as mortes, o pesquisador chama atenção que ela fogem ao que seria um padrão normal das periferias e disputa do tráfico de drogas. "Elas fogem da estatística padrão da violência urbana, que geralmente atinge jovens. Aqui, foram indígenas com mais de 40 anos e que tinham ligação com reivindicação e defesa de direitos. Talvez seja cedo para afirmar, mas é provável que exista ligação com a disputa por espaço na cidade, e isso os coloca em rota de colisão com o tráfico", relata.

Investigação em curso

Em resposta ao UOL, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) do Amazonas todos os casos de lideranças mortas estão os casos estão em investigação pela Delegacia Especializada em Homicídios e Sequestros da Polícia Civil. Um deles, referente ao homicídio de Francisco de Souza Pereira, ocorrido em 27 de fevereiro, já foi concluído e remetido à Justiça. Os outros estão com "diligências ocorrendo com o intuito de identificar e prender os autores dos crimes."

Sobre a segurança no local, a pasta informou que a Polícia Militar "desenvolve ações direcionadas com base nos levantamentos de inteligência e no registro de ocorrências."

A SSP ainda pediu que população colabore para elucidação dos casos de homicídios, e orienta que as informações sejam repassadas para o disque-denúncia, pelo número 181.

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TV Folha