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PM que matou e não nomeou advogado deve continuar investigado, diz MP

Interpretação jurídica feita pela Polícia Militar de São Paulo, revelada em reportagem do UOL, determina, desde maio deste ano, a suspensão de inqueritos de PMs que matam caso eles não apresentem advogados de defesa em até quatro dias - UOL
Interpretação jurídica feita pela Polícia Militar de São Paulo, revelada em reportagem do UOL, determina, desde maio deste ano, a suspensão de inqueritos de PMs que matam caso eles não apresentem advogados de defesa em até quatro dias Imagem: UOL

Alex Tajra, Gabriela Sá Pessoa e Luís Adorno

Do UOL, em São Paulo

24/07/2020 16h01

Contrariando determinação do departamento jurídico da PM (Polícia Militar) paulista, o MP (Ministério Público) orientou que investigações de PMs que matam em São Paulo não podem ser suspensas caso os policiais não apresentem advogados de defesa em até quatro dias. Essa manobra jurídica estava ocorrendo desde maio deste ano. A orientação do MP se deu por meio de nota técnica emitida ontem.

O artifício jurídico da PM, que trava mais de 300 inquéritos contra PMs que mataram pessoas neste ano, foi revelado em reportagem especial publicada pelo UOL em 14 de julho deste ano. O secretário especial de Políticas Criminais do MP, Arthur Pinto Lemos Junior, se baseou na reportagem para indicar que promotores podem oferecer denúncia contra PMs caso eles não nomeiem advogados.

Brecha na lei federal do pacote anticrime

Uma brecha encontrada na lei federal do pacote anticrime, com adendo de um decreto estadual, determina que, para serem investigados, PMs que matam no estado devem constituir um advogado de defesa, seja ele pago pelo próprio agente ou nomeado pelo estado, em até quatro dias. Caso contrário, a investigação deve ser suspensa. De acordo com a norma técnica do MP, essa interpretação é injustificável.

A nota técnica diz que o dispositivo legal da lei anticrime viola o princípio constitucional da isonomia e da eficiência. Da isonomia porque todos são iguais perante a lei, e da eficiência porque ela trava a investigação. Segundo o MP, é dever da autoridade que preside a investigação fazer com que ela não trave.

"A cautela dos citados dispositivos não pode comprometer a investigação. Aliás, parece que a intenção maior do legislador foi garantir aos investigados que atuam na área de segurança pública a assistência jurídica (e não comprometer a apuração de crimes graves)", aponta a Promotoria.

Não se está garantindo contraditório na fase extrajudicial, que, se um dia for criado como opção do legislador, não poderá ser exclusivo do agente ou autoridade de segurança pública, mas de qualquer cidadão.
Laudo técnico do MP

De acordo com a conclusão da nota técnica, não havendo defensor para acompanhar o PM investigado, a melhor solução é a "confecção de um relatório parcial do inquérito pelo seu presidente e encaminhamento dos autos para apreciação do titular da ação penal", que poderá:

  • Oferecer a denúncia;
  • Promover o arquivamento;
  • Propor ao investigado acordo de não persecução penal, desde que preenchidos os requisitos;
  • Devolver os autos à Delegacia de Polícia para novas diligências, nos termos do dispositivo em análise.

"Havendo justa causa para o oferecimento da denúncia, não se desconsidera o requerimento apartado para que os atos não concretizados na etapa extrajudicial por falta de defesa técnica sejam realizados na forja da Justiça, sob o crivo do sistema bilateral", finaliza a Secretaria Especial de Políticas Criminais do MP.

De acordo com o advogado Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, os argumentos adotados pelo MP são "fortes". "Entendo que há um limite em produzir um relatório parcial, mas de outro modo, é preciso uma saída para o impasse", disse.

"A investigação é um instrumento, uma peça informativa para a denúncia. O investigado tem o direito de não querer colaborar com a investigação e não pode ser coagido a isso. Cabe, portanto, à polícia judiciária e ao Ministério Público colherem os elementos que sustentarão a eventual denúncia. No processo, é assegurado o contraditório e a ampla defesa", complementou.

Fundamental que os promotores sigam a nota técnica, reforçando seus papéis de atuarem para que todas as ferramentas investigativas sejam usadas para apuração dos casos de violência policial.
Advogado Gabriel Sampaio

PMs com "licença para matar"

Segundo o coronel Marcus Vinícius Valério, subcomandante da corporação, toda investigação contra PMs envolvidos em mortes pode ocorrer, mas "que não importe na participação direta do investigado". Não podem ser feitos interrogatórios, reconhecimentos e reconstituições de PMs sem advogados, conforme reprodução do documento abaixo:

Em junho de 2020, o coronel Marcus Vinicius Valério, subcomandante da PM, assinou este despacho (considerado secreto), especificando como devem ocorrer as investigações contra PMs que matam em São Paulo - UOL - UOL
Imagem: UOL

Já de acordo com o coronel Ironcide Gomes Filho, chefe do departamento jurídico da PM, todo inquérito policial militar que não tiver indicação de defensor deve ser suspenso, conforme reprodução do documento abaixo:

O coronel Ironcide Gomes Filho, chefe do departamento jurídico da PM, determinou em maio de 2020: "o inquérito que não houver indicação de defensor deve permanecer com sua instrução suspensa" - UOL - UOL
Imagem: UOL

Para Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a manobra jurídica, na prática, é "dar licença para matar". "Retaguarda jurídica para o PM é tratá-lo como sujeito de direitos, mas isso não deve ser compreendido jamais como incentivo à impunidade", afirmou. Juristas de renome de São Paulo concordam com a especialista.

Esperamos que os 300 casos travados, conforme demonstrou a reportagem do UOL, tenham o devido andamento a partir de agora.
Samira Bueno

De acordo com especialistas em segurança pública, a manobra pode ser um dos motivos que ocasionou o aumento da letalidade policial em São Paulo. Entre janeiro e junho deste ano, 514 pessoas foram mortas por policiais no estado, sendo o maior número desde o início da contagem pelo governo paulista, em 2001.

Posicionamentos do estado

A SSP (Secretaria da Segurança Pública) argumentou num primeiro momento que a PM paulista apenas estava se adequando à lei federal do pacote anticrime. No entanto, São Paulo foi o único estado do país a fazer tal interpretação e determinação de suspensão de inquéritos contra PMs que matam.

Além de suspender investigações contra PMs sem advogados, a PM paulista também vedou interrogatórios, reconhecimentos e reconstituições a todos os PMs que não tiverem advogados constituídos. O governo paulista disse, também, que nenhum inquérito está parado.

A reportagem solicitou à SSP uma entrevista para falar sobre o assunto com o secretário, o general da reserva João Camilo Pires de Campos. Até esta publicação, o pedido de entrevista não havia sido atendido.

Questionado pelo UOL no dia 15 de julho sobre a manobra jurídica que suspendeu as investigações contra PMs que matam em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) não se posicionou diretamente sobre o imbróglio jurídico.

Na ocasião, Doria se limitou a dizer que o governo não compactua com nenhum tipo de violência de ordem policial. "Não há nenhum temor de que amanhã viemos a ser avaliados por estimular aquilo que nós não estimulados", afirmou.

Em 17 de julho, três deputados estaduais pediram esclarecimentos ao procurador-geral de Justiça, Mário Luiz Sarrubo, e ao delegado-geral da Polícia Civil, Ruy Ferraz Fontes, sobre o assunto.

"A hipótese de suspensão é uma aberração jurídica e fática, sobretudo em um cenário em que também tem se assistido o aumento da letalidade policial", escreveram os deputados estaduais.

Reunião na Secretaria da Segurança Pública

De acordo com extrato da ata da 16ª reunião extraordinária do Conselho Superior do Ministério Público, realizada às 14h de 14 de julho deste ano, debateram a questão o procurador-geral de Justiça, Mário Luiz Sarrubo, a corregedora-geral do MP, Tereza Cristina Maldonado Katurchi Exner, e procuradores conselheiros eleitos.

Entre os conselheiros, Arual Martins citou a reportagem do UOLe disse que "policiais militares estão usando de estratagema para que essas investigações sejam paralisadas e as prescrições corram soltas" e que "todos os inquéritos policiais militares estão paralisados desde fevereiro e março do presente ano e vê-se que toda semana a questão da violência e letalidade policial".

Sarrubbo afirmou que o Ministério Público já tinha "incidente instaurado sobre o assunto e já estabelecemos contato com o DHPP e com o departamento jurídico da Polícia Militar no sentido de buscar a normalização da situação". Arual disse, então, que tinha uma reunião marcada para quinta-feira (16) com a cúpula da segurança pública estadual. A reportagem apurou que a reunião ocorreu.

O PGJ acrescentou que "tem convicção de que a violência policial militar só diminuirá quando a punição atingir a cadeia de comando, pois se há abuso na rua, não pode haver leniência no comando do batalhão para esse tipo de tipo de violência". Ele também disse que houve um impulsionamento nas eleições de 2018, "aumentando a violência policial com as diretrizes que vêm de Brasilia, em prol de armamento, violência, com legítima defesa diferenciada em projeto de lei anticrime".

Tudo gera um contexto de aprovação social para esse tipo de violência, com o qual o Ministério Público não pode compactuar. A violência tem que ser combatida e o Ministério Público tem que ser o grande bastião do controle e do seu combate.
Mário Luiz Sarrubbo, em reunião com procuradores

O conselheiro Pedro Henrique Demercian complementou o argumento do PGJ criticando a postura do governador João Doria (PSDB), dizendo que ele foi eleito com plataforma de recrudescimento no combate à criminalidade e com uma Polícia Militar forte, mas que se omitiu durante todo esse tempo até que os fatos começaram a vir à tona porque a violência policial agravou.

"O governador do estado, como comandante maior, tem que se posturar, pois uma de suas bandeiras de eleição, assim como a do âmbito federal, foi o recrudescimento do combate à criminalidade, os guardas noturnos empoderados", afirmou o procurador Demercian.

O UOL pediu posicionamento do governo estadual sobre as declarações e aguarda retorno.