Prefeitura de SP contraria MP e tenta despejar 190 famílias na pandemia
Contrariando recomendação do Ministério Público para que não haja remoções durante a pandemia, a Prefeitura de São Paulo tenta despejar dezenas de pessoas que vivem em imóveis na Luz, região central da capital. Segundo a prefeitura, 190 famílias vivem na região, conforme cadastro feito em meados de 2017.
Já de acordo com o núcleo de Movimentos Sociais e População de Rua da CDH-OAB (Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil), ao menos 390 famílias moram nos prédios e casas que são alvos de ações de desapropriação do Poder Público.
No último dia 23, o MP-SP recomendou à prefeitura, após representação do MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto), a suspensão de despejos de pessoas vulneráveis que estejam ocupando imóveis públicos como moradia durante a pandemia. Isso não impediu que as ações continuassem correndo na Justiça.
A administração municipal argumenta que o local é uma Zeis (Zona Especial de Interesse Social), e que tem de fazer as remoções por força de lei. A região, conhecida como 'Cracolândia', está inclusa no PPP-Luz (parceria público-privada), "que objetiva a instalação de habitação de interesse social, equipamentos públicos e a renovação urbana da região", segundo escreveu a Secretaria Municipal de Governo em documento enviado no dia 20 de junho ao TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo).
Neste ofício, a prefeitura pede "urgência", em meio à pandemia da Covid-19, para conseguir a declaração de posse sobre os imóveis da região. A Secretaria Municipal de Governo afirma ainda que a localização destes imóveis "recai exatamente nas cercanias da Cena de Uso Aberto da região da Luz, principal concentração de usuários de crack, álcool e outras drogas".
Os imóveis alvos da prefeitura estão em situações distintas — alguns têm proprietários identificados, outros estão ocupados após abandono. As ações visam tomar posse dos pequenos prédios e casarões, para que depois as famílias sejam removidas.
Ao UOL, o prefeito Bruno Covas não explicou o porquê da urgência no pedido. "A reintegração das quadras 37 e 38 está prevista há algum tempo, não é nenhuma novidade. Aqueles que acompanham as ações da prefeitura sabem que isso já tinha sido solicitado há um tempo", disse Covas em coletiva, respondendo questionamento da reportagem. "Faz parte de ações para tentar diminuir o fluxo que está lá presente, que sempre foi uma preocupação e agora é uma preocupação extra para evitar aglomerações."
Pelo menos 44 processos judiciais sobre os imóveis da região correm na Justiça paulista, sendo 40 deles de desapropriação direta e impetrados pela Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo).
"Sobre as 40 ações diretas, solicitamos esforços da Companhia, através de seu departamento jurídico, para solicitar imediata imissão da posse, através do plantão da Central de Mandados de Justiça Paulista, mesmo durante o período da pandemia e a suspensão das atividades presenciais", diz documento assinado por Alexis Galias de Souza Vargas, secretário-executivo de Gestão de Projetos Estratégicos.
Moradores desempregados e em condição vulnerável
A reportagem esteve em alguns dos locais onde a prefeitura quer a remoção das famílias. Os prédios e casarões não têm necessariamente relação com o chamado "fluxo" (alcunha para a concentração de usuários de crack na região da Luz). Trabalhadores e trabalhadoras vivem nesses locais, muitos deles desempregados e em condição vulnerável por conta da pandemia (leia mais abaixo).
Na última terça-feira (28), a região foi palco mais uma vez de bombas lançadas pela GCM (Guarda Civil Metropolitana), e barricadas como respostas dos moradores e usuários que permanecem nas ruas durante a madrugada (veja o vídeo abaixo).
Rildo Marques de Oliveira, coordenador do Núcleo de Movimentos Sociais e População de Rua da CDH-OAB, diz que ações violentas na região estão sendo realizadas pela GCM (Guarda Civil Metropolitana) como "atos preparatórios" para que, posteriormente, o TJ-SP justifique o despejo das famílias que vivem ali.
A Prefeitura informou que a GCM atuou porque "registrou um tumulto" no local, e que não houve registro de detidos ou feridos.
"Esse tipo de operação passa para a população a ideia de que quem vai ser removido são os traficantes e bandidos. Mas não se trata disso. As pessoas que moram nas residências são de baixa renda. São, em sua maioria, trabalhadores que terão de desocupar os imóveis sem que a PM resolva definitivamente a moradia deles", diz Marques.
O fluxo, que está na rua, com milhares de pessoas na cena de uso, é diferente desses moradores que estão dentro dos imóveis
Rildo Marques de Oliveira, advogado
Em um dos ofícios enviados pela prefeitura por meio da Cohab, o Poder Público argumenta que tem um "planejamento" para fazer um cadastro com os moradores, oferecer auxílio aluguel e entregar unidades habitacionais para as famílias.
Marques diz que o projeto de intervenção da Prefeitura foi "desvirtuado", e que os moradores que serão removidos não conseguem pagar pelas habitações que serão construídas no mesmo local. Questionada, a Prefeitura não informou onde serão realocadas as famílias que podem ser despejadas.
"Aqui não tem traficante"
Girandir Lopes dos Reis vive há 40 anos na rua Helvétia — região que concentra boa parte dos imóveis que a prefeitura quer derrubar. Ele veio de Januária, em Minas Gerais, e chegou a gerenciar dez pensões que funcionam naquela rua. Hoje, ele aluga dois pequenos prédios e subloca para outras cem pessoas que vivem nos imóveis. Os prédios em que Reis trabalha estão entre os alvos da prefeitura para remoção.
"Aqui não tem traficante, não tem usuário. As pessoas que usam drogas ficam nas ruas, quem está nesses casarões são moradores, trabalhadores, gente que tem renda baixa. Vem casal falar comigo, vem família perguntando quanto custa", diz Reis ao UOL, enquanto é observado por mais de uma dezena de guardas municipais que ocupam uma esquina da Helvétia.
Quem está aqui é gente que trabalha. Eu vou resistir até o fim, até quando o trator da prefeitura passar aqui
Girandir Lopes dos Reis, comerciante e morador da rua Helvétia
Para o médico Flávio Falcone, que trabalha há pelo menos oito anos com a população em situação de rua, em especial na 'Cracolândia', a urgência pedida pela prefeitura não tem relação com a saúde dos moradores, mas com um "projeto de especulação imobiliária".
"Grande parte das pessoas que estava morando no Atende II [Atendimento Diário Emergencial, equipamento de atendimento social que foi fechado em abril pela gestão Covas] não abandonou a região da Luz e agora estão morando na Praça Princesa Isabel. É um processo que já foi feito no passado, e o que de fato aconteceu foi que essas pessoas foram colocadas na rua", diz Falcone à reportagem.
A Defensoria Pública de São Paulo, que entrou com uma ação contra o fechamento do Atende II, informou que o município firmou um acordo e "se comprometeu a manter atendimento sócio assistencial no quadrilátero da Luz, mediante instalação de banheiros com instalações sanitárias, chuveiros e bebedouros na Praça Júlio Prestes, bem como mantendo oferta de alimentação".
O que diz a prefeitura
Em nota, a Sehab (Secretaria Municipal de Habitação) informou que "tem mantido diálogo permanente com os moradores da área dos Campos Elíseos".
"Foi a partir da avaliação do cadastro socioeconômico das famílias que residem nestas duas quadras, identificadas em trabalho de cadastro e selagem pelo poder público, que o documento [com as diretrizes do Projeto de Intervenção] foi elaborado. Nele também constam os pontos mais relevantes sobre o projeto arquitetônico urbanístico, equipamentos públicos e programas habitacionais que definirão as condições do atendimento habitacional às famílias diretamente afetadas pela intervenção", diz a secretaria.
"Todas as ações da Prefeitura no que tange o processo de remoção das famílias das quadras citadas têm total ciência do Conselho Gestor. Não há data definida para a reintegração do local."
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