Jacarezinho: Sem provas, relatório policial culpa STF por avanço do tráfico
Sem provas, a Polícia Civil responsabiliza decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) pelo avanço do crime organizado na favela do Jacarezinho, zona norte carioca, em relatório de inteligência obtido pelo UOL. A reportagem ouviu especialistas em segurança pública sobre o teor do documento.
No relatório, a investigação relaciona a restrição das operações durante a pandemia —determinada pelo STF— ao fortalecimento do tráfico de drogas com base apenas em fotos de barricadas em vias públicas para justificar a ação policial que deixou ao menos 28 mortos, a mais letal da história do Rio.
"O avanço do crime organizado ficou mais evidenciado após a decisão do STF que proibiu a realização de operações policiais em comunidades
do Rio de Janeiro durante a pandemia, salvo em situações absolutamente excepcionais", cita um dos trechos do documento.
Contudo, esse tipo de procedimento sempre foi adotado por favelas sob o domínio do tráfico de drogas —antes mesmo da decisão do Supremo de restringir operações policiais. No relatório, também não consta a informação de quando as imagens foram produzidas —nelas, há somente a indicação das legendas "antes" e "depois" da decisão do STF.
"Inúmeras vias públicas foram bloqueadas por construções e barricadas, conforme figuras abaixo", cita um dos trechos do relatório. "Observa-se que os moradores têm sido obrigados a parar os veículos automotores, desembarcar dos carros, retirar o trilho de trem e, após ultrapassar o obstáculo, colocar o trilho no local, tudo sob determinação do tráfico de drogas", conclui.
24 armas apreendidas x 27 mortos e 3 presos
No documento, a Polícia Civil reforça a tese de que a ação foi "legítima" e inclui a lista dos mortos, apresentados como "elementos que atentaram contra o Estado" com base em fotos colhidas em redes sociais e fichas criminais.
Não há no relatório informações sobre a perícia no local —feita para determinar a dinâmica das ações que resultaram em morte— ou sobre apreensões das armas usadas pelos policiais civis que participaram da ação. Mais de 200 agentes integraram a operação.
O documento ainda inclui uma lista com 24 armas apreendidas —cinco fuzis, uma submetralhadora, duas espingardas e 16 pistolas.
Operação no Jacarezinho (RJ) deixa dezenas de mortos
'Só vale a palavra dada, não a prova técnica'
O UOL ouviu especialistas em segurança pública para analisar o conteúdo do relatório.
Podemos olhar para esse documento como uma narrativa que quer legitimar a ação com base em evidências frágeis. A Polícia Civil do Rio não está prestando contas. Cadê o relatório de balística, a perícia e a apreensão das armas dos policiais? Não é uma peça técnica, é uma opinião
Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O sociólogo também questionou a postura adotada pela Polícia Civil em entrevista coletiva horas após a operação policial de 6 de maio. "Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante", disse o delegado Felipe Curi, do DGPE (Departamento Geral de Polícia Especializada).
"O próprio delegado disse que só tinha bandido ali, mesmo sem perícia. Toda a cena da operação foi desfeita. Só vale a palavra dada, não a prova técnica", criticou.
Lima viu "afronta" ao STF pela forma como a ação foi conduzida, criticou seu planejamento e contestou o argumento de avanço do tráfico. Segundo ele, a Polícia Civil deveria ter pedido reforço às Forças Armadas para usar veículos blindados, já que havia constatado barricadas no local.
"Todos os indicadores de violência no Rio caíram e a Polícia Civil diz que houve avanço do tráfico? Se a operação era de exceção, a polícia falhou ao não pedir apoio ao Exército. Se não era, foi apenas uma afronta à decisão do STF", analisou.
Para Storani, operações coíbem tráfico
Ex-capitão do Bope, a tropa de elite da PM-RJ (Polícia Militar do Rio), o antropólogo Paulo Storani cita falta dos dados estatísticos que demonstrem a relação entre a decisão do STF e o avanço da criminalidade no Jacarezinho. Mas diz que as evidências históricas nas últimas décadas demonstram que há uma correlação entre a ausência de operações e o fortalecimento do tráfico.
"Não há evidências no documento [da relação entre a decisão do STF e o fortalecimento do tráfico]. Mas o tráfico avança quando há redução de operações em áreas sob o domínio do crime organizado. Em um curto prazo, todo mundo aplaude, porque diminui o índice de letalidade violenta e a quantidade de confronto envolvendo o Estado. Mas também há um aumento do ânimo expansionista das organizações criminosas", pondera.
Storani diz a ação policial deve ser alvo de investigação.
A polícia encontrou resistência e deu resposta à altura. Mas tudo tem que ser investigado. As instituições não têm carta branca para agir. Não sou a favor do 'bandido bom é bandido morto'. Se o traficante foi identificado, desarmado e assassinado, isso é execução. Mas será que foi isso que aconteceu?
"Não podemos desconsiderar da equação a violência policial. Mas eles [policiais] estão enfrentando a criminalidade violenta. Não é o camarada vendendo contrabando do Paraguai no camelô da Uruguaiana. Estamos falando de homens com fuzis que controlam o território e oprimem a população local, que obedece as leis dessa organização criminosa", completa.
Investigações do caso
A operação é investigada pela PGR (Procuradoria-Geral da República), MP-RJ (Ministério Público do Rio) e pela própria Polícia Civil.
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