'Pai, vão matar a gente': menina presenciou 'execução' em casa, diz família
Uma família que mora na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, viveu momentos de terror dentro da própria casa em meio à ação policial mais letal da história do estado, que deixou ao menos 28 mortes na quinta-feira (6).
Cerca de 30 minutos após um suspeito ferido e desarmado entrar no imóvel para se esconder, policiais civis invadiram o local para matá-lo, segundo denunciaram os moradores ao UOL. O assassinato ocorreu no quarto de uma menina de apenas 9 anos, que presenciou a cena.
Família mostra quarto onde homem foi morto em ação policial no Jacarezinho
"Eles [policiais] cometeram uma 'execução sumária' na frente de uma criança, no quarto dela, segundo relatos da família. É algo que vai mexer com a criança pelo resto da vida dela. Vamos buscar a apuração devida dos fatos", disse o advogado Rodrigo Mondego, que integra a Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que monitora o caso.
Questionada pelo UOL, a Polícia Civil do Rio descartou a versão contada pela família mesmo sem perícia ou investigação sobre o caso sob a justificativa de que 26 dos 27 mortos "tinham antecedentes criminais ou eram envolvidos com atividades criminosas".
"O único executado foi o inspetor de polícia André Leonardo de Mello Frias", disse a nota, em referência ao agente morto durante troca de tiros no local.
'A polícia matou um homem no quarto dela'
A movimentação era intensa na rua Amaro Rangel na tarde desta sexta-feira (7), principal via de acesso ao Jacarezinho. O comércio estava aberto normalmente, como se a realidade por ali estivesse alheia à sangrenta operação do dia anterior.
Mas os becos estreitos da comunidade trazem outro tipo de percepção. Nas paredes, as marcas de tiro se tornaram uma espécie de cicatriz aberta.
De mãos dadas com uma menina, uma mulher se apressa para deixar a favela. "A polícia matou um homem no quarto dela. Essa menina não está mais conseguindo dormir. É muita coisa para uma criança de 9 anos. Ela vai ficar uns dias comigo", contou a tia da garota, que a levou para Madureira, também na zona norte carioca.
"Moço, ele [policial] foi covarde. Matou o rapaz dentro da casa dela! No quarto da bebê dela!", disse uma vizinha.
Os pais da garota conversaram com o UOL no imóvel onde tudo aconteceu.
"É ruim até de lembrar. Acordei com o barulho de helicóptero. No meio do tiroteio, entrou um rapaz baleado dentro da minha casa. Sou morador de comunidade. Não tem como dizer 'não vai entrar'", contou o comerciante de 39 anos, não identificado pela reportagem para evitar que sofra represálias.
'Ele não estava armado', diz moradora
Com ferimento em um dos pés causado por um tiro, o suspeito permaneceu por volta de 30 minutos na sala. "Ele só disse: 'Me ajuda, pelo amor de Deus'. Ele não estava armado e só pediu uma toalha para cobrir o ferimento", contou a mãe da menina, uma mulher de 43 anos que passou a vender churrasquinho na chapa após ter sido demitida durante a pandemia.
Os policiais civis, que seguiram um rastro de sangue deixado pelo suspeito, arrombaram o portão do prédio de dois andares onde a família mora. "Eu fui até o corredor e disse: 'calma, moço! Tem criança aqui. Aí, o policial perguntou: 'alguém entrou aqui?'. Quando eu disse que tinha uma pessoa baleada, ele me empurrou e entrou", relata a mãe.
Ao ouvir a movimentação, o suspeito então se escondeu no quarto da garota. Em pé, o pai permaneceu no corredor, de mãos dadas com a menina.
O policial apontou o fuzil direto na minha direção. Aí, eu gritei: 'sou morador! Tô com criança!'. Ele respondeu: 'sai morador'. Não deu nem tempo de sair. Ele efetuou o disparo e matou o rapaz no quarto da minha filha. Depois, ouvi mais dois tiros. Quando descemos, vimos outros policiais. Aí, a minha filha me perguntou: 'papai, vão matar a gente'?
"O que eu pude fazer foi colocar o meu corpo na frente dela. A minha filha tava com medo, tava chorando. Eu fiquei segurando a mão dela. Ela não quer mais voltar para casa. Ela continua muito abalada pelo que aconteceu", completou.
Ao sair do imóvel, o pai da garota disse que ainda precisou se explicar aos policiais. "Perguntaram se eu tinha passagem, se era envolvido [com o tráfico]. Mostrei a documentação, disse que era trabalhador, que tenho um comércio na comunidade. Aí, me mandaram esperar na casa da vizinha", relatou.
O quarto, decorado com bonecas e com uma mensagem na parede onde se lê "aqui dorme uma princesa", se tornou a cena de um crime, com duas marcas de tiro na parede, sangue espalhado pela cama e pela mochila da menina.
Como não foram orientados pelos agentes a preservar o local para que fosse feita uma perícia, o casal limpou o quarto da menina. Mas as lembranças dos tiros e do homem morto na casa da família talvez nunca sejam totalmente superadas pela família.
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