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Carrefour ameaça ir à Justiça por livro sobre caso Beto; editora vê censura

João Alberto Silveira Freitas e a esposa, Milena Borges Alves (e); ele foi espancado em uma loja do Carrefour em Porto Alegre e morreu - Arquivo pessoal
João Alberto Silveira Freitas e a esposa, Milena Borges Alves (e); ele foi espancado em uma loja do Carrefour em Porto Alegre e morreu Imagem: Arquivo pessoal

Beatriz Mazzei

Colaboração para o UOL, de São Paulo

30/06/2021 04h00

O Carrefour ameaçou processar os responsáveis por um livro lançado ontem com aprendizados para a segurança privada tirados do caso João Alberto, homem negro morto após ser espancado por funcionários terceirizados de uma unidade da rede de supermercado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

Elaborada a partir de uma série de pesquisas da professora da Unicamp Susana Durão, a obra "Caso Carrefour: Segurança Privada e Racismo - Lições e Aprendizados" foi publicada pela editora da Universidade Zumbi dos Palmares em parceria com a Fenavist (Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores).

A Universidade Zumbi dos Palmares convidou o Carrefour para o evento de lançamento do livro. Contudo, segundo e-mail a que o UOL teve acesso, a rede não só se recusou a participar como sugeriu que abriria um processo judicial contra os autores da obra. Assinada pelo gerente jurídico do grupo, Danilo Bonadio Bonfim, a mensagem afirma que:

O Grupo Carrefour se reserva no direito de buscar a responsabilização criminal de todos os envolvidos, bem como adotar as medidas cíveis e reparatórias por todos os prejuízos que venham a ser causados."
Carrefour, em nota enviada à Universidade Zumbi dos Palmares

Entre os incômodos listados a respeito do livro, o executivo aponta que a obra tem título que reforça uma relação do Carrefour com práticas racistas, o que ele classifica como uma inverdade, e traz "informações em desarmonia com a veracidade dos fatos e afirmações que não refletem o posicionamento do Grupo Carrefour frente ao episódio".

Procurado pelo UOL, o Carrefour preferiu não se manifestar sobre a ameaça de ação judicial. Informou ter sido pego de surpresa com a publicação por não ter sido procurado para contribuir com ela. Acrescenta ainda que, após o caso de João Alberto, assumiu o compromisso de combater o racismo estrutural no Brasil.

O Carrefour manteve, desde o incidente em Porto Alegre, uma postura absolutamente transparente e colaborativa, tendo implementado os diversos compromissos públicos anunciados e celebrado, em tempo recorde, termo de compromisso com autoridades públicas no valor de R$ 115 milhões com diversas ações em prol da igualdade racial."
Carrefour, em nota

caso beto - Divulgação - Divulgação
Capa do livro 'Caso Carrefour: Segurança Privada e Racismo - Lições e Aprendizados', assinado por Susana Durão, professora do Departamento de Antropologia da Unicamp, e por Josué Correia Pares, membro da diretoria de segurança do HC da USP
Imagem: Divulgação

A soma milionária faz parte de um termo de ajustamento de conduta (TAC) para reparar danos morais comunitários. O dinheiro custeará, entre outras ações, bolsas de estudo de idiomas, graduação e pós-graduação para estudantes negros e investimento em negócios de empresários pretos e pardos. Para os nove familiares de João Alberto, a empresa pagou indenizações no valor de R$ 5,2 milhões.

O reitor José Vicente afirmou que a Universidade Zumbi dos Palmares abrirá boletim de ocorrência contra a ameaça processual por constrangimento e censura. Vicente afirma que a resposta do Carrefour foi uma tentativa de silenciamento e que houve motivação racista e contraditória.

A forma como responderam contradiz o posicionamento da rede, que agora diz que aprendeu com o caso de João Alberto e que quer dialogar com a sociedade sobre o racismo. Acredito que a tratativa do grupo seria diferente se fosse um trabalho acadêmico feito por outras instituições de ensino."
José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares

A instituição leva no nome uma homenagem ao líder do quilombo dos Palmares e preza pela inclusão da população negra por meio do ensino superior.

Em resposta à acusação de que o livro possui "informações em desarmonia com a veracidade", a universidade informa que o estudo foi feito por uma pesquisadora especializada em segurança pública, que analisou 200 publicações sobre o tema, além de dialogar com empresas da segurança privada e entrevistar profissionais da área.

Divido em seis capítulos, o livro faz logo no início um panorama da segurança privada patrimonial e sua trajetória histórica. Em determinado trecho, cita que o trabalho do vigilante precisa combinar a proteção patrimonial com o respeito à vida das pessoas.

Em seguida, analisa o Caso Carrefour. Para isso, mescla desdobramentos do caso noticiados pela imprensa com uma leitura do que rege e legislação. Por fim, apresenta um guia de boas práticas para evitar novos casos como o de João Alberto.

Mercado da segurança privada

Economicamente promissor, o segmento de segurança privada movimenta cerca de R$ 33,7 bilhões no Brasil. O total de vigilantes no segmento de segurança privada chegou a 545.447 em abril de 2020, segundo a Polícia Federal (PF), que regulamenta a atividade desde 2012 e fornece curso de formação para interessados em atuar na área.

Segundo a Fenavist, 21% dos vigilantes trabalham em bancos, 14% em indústrias, 13% em empresas de serviços e 18% no setor público. Apesar da rigidez, o segmento é marcado pela informalidade.

De acordo com o reitor da universidade, o livro reforça a constatação de que o racismo está presente em todas as estruturas da sociedade. Por isso, os indivíduos não estão isentos de manifestá-los e não é possível tratar o evento como caso isolado.

"No caso do Carrefour é possível analisar também como a segurança privada é um braço da segurança pública. Os gestores da segurança privada são em grande maioria policiais, e dentro dessa estrutura, acabam apresentando um olhar enviesado principalmente para pobres e negros", completa José Vicente.