Para evitar ação, Carrefour paga R$ 115 mi; família de Beto recebe R$ 5 mi
O Carrefour aceitou na última semana pagar R$ 115 milhões em ações de reparação à sociedade para afastar a abertura de ações judiciais pela morte de João Alberto Freitas, o Beto Freitas, espancado por seguranças em uma de suas unidades de Porto Alegre, em novembro de 2020. Este valor é 22 vezes os R$ 5,2 milhões destinados aos familiares do homem negro morto, segundo apurou o UOL junto a pessoas próximas ao assunto.
A primeira quantia faz parte de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) acertado com entidades públicas e organizações do movimento negro para reparar danos morais comunitários e descartar a abertura de ações judiciais.
Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público, esse é o valor mais alto para um acordo do tipo para combate ao racismo. Será destinado à concessão de bolsas de estudo para pessoas negras, campanhas de combate ao racismo e apoio a empreendedores, dentre outras ações.
O dinheiro destinado à família faz parte de outro acordo, negociado diretamente com o Carrefour.
Mariana Grangeiro, advogada especialista em direito civil, diz que os valores pagos à família de João Alberto são superiores aos de outros processos similares. "Está bastante elevado em relação ao que o judiciário tem fixado hoje", disse.
Segundo ela, é normal que haja uma grande diferença entre os valores das indenizações coletiva e individual. "Os órgãos negociaram valores que promoveriam a valorização do negro e, com isso, amenizaria o impacto negativo da notícia gerada pelo Carrefour. Por isso, justificam-se valores mais elevados. Imagina quantos negros vão ser atingidos com essas medidas? O valor individual é pequeno, mas o impacto da sociedade tem que ser significativo", disse.
Os parentes de Beto precisaram assinar termos de confidencialidade porque os acordos são sigilosos. O UOL chegou ao valor junto a cinco fontes, que pediram anonimato. A viúva Milena Borges Alves foi a que recebeu o maior valor, mas a reportagem não informará o montante recebido por cada pessoa, já que a família mora em regiões violentas.
O Carrefour informa ter indenizado nove familiares de João Alberto: os quatro filhos, a neta, a irmã, o pai, a viúva e a enteada —as duas últimas presenciaram as agressões dos agentes da Vector, empresa de segurança privada que prestava serviço para a rede de supermercado.
No final de abril deste ano, o Carrefour havia depositado R$ 1,1 milhão para Milena. Como o valor foi disponibilizado antes de o acordo ser fechado, os advogados dela encararam o gesto como forma de pressionar por um acerto, já que o pleito era obter R$ 5 milhões. O Carrefour nega ter forçado qualquer acordo.
Cerca de um mês depois, as duas partes bateram o martelo, mas a quantia não foi divulgada. "Esse valor é sigiloso", reforçou ao UOL um dos advogados da viúva, Hamilton Ribeiro.
Procurada pelo UOL, a empresa informou que não pagou o valor exigido, pois estava "muito acima das médias de condenação aplicadas pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) para casos semelhantes". Por isso, as negociações se estenderam. O Carrefour afirmou ainda que, durante a fase de tratativas, foi garantido "todo suporte financeiro e psicológico" para a viúva.
O pai de João Alberto, o pastor João Batista, recebeu quantia inferior em relação a Milena. Em fevereiro de 2021, Batista recusou R$ 500 mil do Carrefour. O valor final também não foi divulgado pelo advogado dele, Rafael Peter Fernandes.
João Alberto deixou quatro filhos e uma enteada, filha de Milena. Com eles, o Carrefour fez três acordos diferentes. A filha e a enteada receberam indenizações em dinheiro. Já os três filhos menores de idade receberam uma soma em dinheiro e terão uma pensão até completarem 25 anos. Hoje eles têm 16, 15 e 10 anos. Segundo o advogado Nilton Beck Muradas Junior, o valor é "correspondente à obrigação do pai (falecido)".
Apesar do acordo, os valores depositados para os filhos menores de idade não podem ser movimentados até completarem 18 anos. Muradas Junior vai entrar com um pedido na Justiça para que a mãe das crianças possa "promover o sustento dos filhos". "Estamos buscando autorização para levantar valores, para que a mãe possa comprar/alugar (em nome dos filhos) uma casa em novo local", explicou.
O advogado Luis Claudio Barbosa foi responsável pelo acordo da filha mais velha de João Alberto e da filha dela, de seis anos. "Não vou falar de valores, mas a expectativa de vida da criança é maior que a da mãe", explicou, dando a entender que os valores são diferentes entre elas.
O defensor questiona por que os familiares de João Alberto não foram incluídos como beneficiários das bolsas de estudo, previstas no TAC. "Nenhum dos programas inclui os familiares."
Barbosa observa que, durante as tratativas com o Carrefour, foram disponibilizados psicólogo e assistente social para suas clientes. Além disso, pagou a mensalidade de uma escola particular. Entretanto, após o acordo, tudo foi cortado. "Agora que eles precisam de assistência, porque vão consumir o pouco que receberam", diz o advogado.
Para o advogado e doutor em direito Hédio Silva Júnior, ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, a discrepância de valores pode ser entendida como uma estratégia da marca francesa. A indenização à família deveria ser "imensamente maior", diz.
É um indício de que a corporação está mais preocupada em 'apagar incêndio' e preservar sua imagem do que em proteger a família e mudar seus protocolos. Trata-se de tentar 'precificar' o valor da vida humana e, sobretudo, precificar a responsabilidade da corporação em termos de preservar a incolumidade física e moral de seres humanos.
Hédio Silva Júnior, ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo e coordenador-executivo do Idafro (Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras)
Órgãos públicos fiscalizarão aplicação de recursos
Pelo acordo firmado no dia 11, cinco órgãos públicos ficarão responsáveis por fiscalizar o cumprimento das medidas e aplicação dos R$ 115 milhões. Participaram da assinatura do TAC o MP-RS (Ministério Público do Rio Grande do Sul), o MPF (Ministério Público Federal), o MPT (Ministério Público do Trabalho), a DP-RS (Defensoria Pública do Rio Grande do Sul), a DPU (Defensoria Pública da União), a Educafro e o Centro Santos Dias de Direitos Humanos, ligado à Arquidiocese de São Paulo.
As ações são as seguintes:
- Bolsas de estudo: R$ 68 milhões serão destinados para custear cursos de pessoas negras de graduação e de pós-graduação;
- Campanhas de combate ao racismo: R$ 7,5 milhões custearão ações educativas sobre discriminação racial e promoção da cultura negra;
- Cais do Valongo: R$ 2 milhões custearão iniciativa museológica e revitalização na área portuária do Rio de Janeiro, que foi a porta de entrada que mais recebeu africanos escravizados nas Américas;
- Comunidades quilombolas: R$ 2 milhões serão usados para fomentar a produção agrícola e artesanal dessas pessoas;
- Empreendedores negros: R$ 8 milhões serão revertidos a incubadoras, empresas que ajudam a desenvolver companhias iniciantes, que deem suporte a empresários negros;
- Cursos de idiomas: R$ 6 milhões pagarão bolsas destinas a isso e a cursos de inovação e tecnologia com foco na formação de jovens profissionais para o mercado de trabalho.
Além disso, o MPT vai fiscalizar se o Carrefour implementará medidas para garantir o respeito aos direitos humanos nas relações de trabalho. A ideia é evitar condutas envolvendo seus funcionários e prestadores terceirizados. Já o MP-RS e DP-RS averiguarão se a empresa está fornecendo treinamento anual sobre racismo estrutural a dirigentes e outros trabalhadores.
O procurador da República Enrico Rodrigues de Freitas reforça que os valores não ficarão de posse dessas repartições, mas com o Carrefour. Para auxiliar na fiscalização, uma auditoria externa será contratada, o que está previsto no TAC.
"A empresa de auditoria vai fornecer relatórios para a gente. E vamos fiscalizar as aplicações dos recursos como fazemos com outros TACs, solicitando informações e documentos", explica o procurador.
O Ministério Público Estadual ficará responsável por acompanhar a concessão de bolsas de estudo, por editais públicos. Segundo a promotora de Justiça Gisele Müller Monteiro, está sendo planejada até uma "bolsa permanência" para incentivar que os estudantes negros permaneçam no curso. A intenção é fornecer um valor para cobrir despesas como alimentação, deslocamento e materiais.
"Isso foi algo que o movimento negro nos trouxe, que, apesar de conseguirem o acesso à educação, muitos acabavam evadindo. Eu acredito que chega a 30% o percentual de vagas por cotas preenchidas, no qual houve abandono."
Ainda não há previsão de quando os editais serão lançados, mas eles terão abrangência nacional com reserva de 30% das vagas para estudantes de universidades do Rio Grande do Sul.
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