Entidades travam batalha sobre como levar casos de racismo à Justiça
Após a morte de João Alberto Freitas um uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre (RS), e de casos como o do metalúrgico Luiz Carlos da Silva, 56, que foi obrigado a tirar a roupa para provar não ter furtado em uma unidade do grupo Assaí, em Limeira, no interior de São Paulo, organizações do movimento negro passaram a divergir sobre como levar à Justiça empresas acusadas de crimes que envolvem pessoas negras.
Na última quarta (15), o Coletivo Cidadania Antirracismo e Direitos Humanos entrou na Justiça com uma ação civil pública contra o Assaí pedindo uma indenização de R$ 162 milhões. Um mês antes, no dia 11 de agosto, as entidades Educafro e Centro Santos Dias já haviam protocolado outra ação semelhante, com um pedido de indenização de R$ 100 milhões.
Segundo André Luiz Moreira, advogado do Coletivo Cidadania, a ação da entidade foi motivada para "evitar que o caso não seja apropriado por uma única entidade, em vez de atender a toda a coletividade".
O advogado se refere ao caso do Carrefour. Ao lado de entidades públicas, Educafro e Centro Santos Dias firmaram em junho um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com a rede varejista, que se comprometeu a pagar R$ 115 milhões para fomentar ações de combate ao racismo. Em troca, não seria responsabilizada criminalmente pela morte de João Alberto, homem negro espancado por seguranças em uma loja do grupo em Porto Alegre em novembro de 2020. O dinheiro será gerido pelas instituições envolvidas.
Para Marlon Reis, advogado da Educafro, o entendimento de que as organizações se apropriaram do caso é equivocada. "Como entidade da sociedade civil, não podemos intervir criminalmente. Quem denuncia criminalmente é o Ministério Público. Legalmente, não temos poder para influenciar sobre ação penal", diz.
Sobre o destino do recuso, o advogado explica que "o Carrefour precisa comprovar a aplicação dos valores para a destinação que foi dada. Não passa um só centavo pelas contas das entidades da sociedade civil". No entanto, Reis comemorou a abertura de mais uma ação contra o Assaí.
Estamos felizes em saber que outra organização se mobilizou [no caso Assaí] porque nós abrimos esse universo das ações coletivas. Não existe nenhuma apropriação por uma organização. Até porque, pela lei, essas entidades não falam em nome próprio, elas agem como substitutos processuais de toda a coletividade
Marlon Reis, advogado
No caso Assaí, os advogados da Educafro e do Centro Santos Dias pedem, além da indenização e de outras medidas, a revisão dos protocolos de abordagem de segurança no interior das lojas e que implementem ações para os funcionários de educação em direitos humanos.
Já o Coletivo Cidadania pede uma medida liminar para que a Justiça suspenda abordagens com revista pessoal, seja por empregados da rede ou terceirizados. O advogado André Luiz Moreira explica que, por ser uma ação de âmbito civil, o grupo não pode requerer a responsabilização criminal da empresa, porém, pedem para que o caso seja resolvido mediante uma declaração de reconhecimento da prática racista por parte do grupo varejista.
A abordagem do Assaí é ilegal. Nenhum agente privado pode exigir uma revista. Só quem tem legitimidade para isso são agentes públicos (policiais militares ou civis), mediante uma ação de suspeita concreta, que justifique a intromissão na sua liberdade pessoal
André Luiz Moreira, advogado
Divergência: para onde vai o dinheiro?
Moreira explica que o valor pedido é maior que o do pedido anteriormente porque foi estabelecido com base em 5% do valor do EBITDA do Assaí. O índice mostra quanto a companhia gera de lucro com atividades operacionais antes de deduzir impostos ou investimentos financeiros.
Na petição, o Coletivo pede para que o valor seja destinado ao Fundo Estadual de Defesa dos Interesses Difusos (FID), sob gestão do Conselho de Promoção da Igualdade Racial do Estado de São Paulo. Criado em 1989, o fundo gere recursos que podem ser usados em projetos de organizações aprovadas por meio de edital público.
Diferentemente do acordo estabelecido no TAC com o Carrefour, Educafro e Centro Santos Dias também preveem a destinação dos recursos da ação contra o Assaí ao FID.
As duas ações contra o Assaí estão sendo analisadas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. O órgão ainda não se manifestou sobre a segunda petição, mas, no mês passado, abriu um inquérito para "apuração de dano moral e social difuso decorrente da prática de tratamento discriminatório, desumano e degradante por agentes da empresa 'Sendas Distribuidora S/A' (Assaí Atacadista), contra consumidores ou potenciais consumidores ilegalmente abordados nas dependências do estabelecimento empresarial".
Mudança para casos de racismo
O jurista Italo Pereira, secretário-geral da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro), explica que ações civis públicas são uma forma de processo judicial para tutelar o interesse de determinada coletividade ou de um alto número de pessoas que esteja submetida no mesmo contexto de violação de direitos.
"Dessa forma, a coletividade expressa no caso do Assaí seria o das pessoas negras brasileiras", diz. Apesar de serem consideradas novas entre organizações do movimento negro do Brasil, diz ele, as ações civis públicas já são utilizadas por outras entidades da sociedade civil em situações semelhantes.
Para o jurista, o surgimento dessas ações sinalizam que, apesar das divergências, há uma mudança na condução de casos de racismo. "A sociedade civil está se organizando a partir do urgente e necessário debate racial e levando essas questões ao Poder Judiciário", afirma.
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