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Polícia cita tráfico como 'única forma de subsistência' de algemado em moto

Cena foi flagrada na avenida Anhaia Mello, na zona leste de São Paulo - Reprodução/Instagram
Cena foi flagrada na avenida Anhaia Mello, na zona leste de São Paulo Imagem: Reprodução/Instagram

Herculano Barreto Filho

Do UOL, em São Paulo

03/12/2021 04h00

O envolvimento com o tráfico de drogas foi citado pela Polícia Civil como "a única forma de subsistência" para Jhonny Ítalo da Silva em um episódio anterior ao do último dia 30, quando o jovem negro foi algemado a uma moto da Polícia Militar e arrastado em via pública na zona leste de São Paulo.

O argumento embasou um pedido de conversão de prisão em flagrante para preventiva quando ele foi preso na tarde de 28 de maio deste ano, apenas um mês após completar a maioridade. Na ocasião, foi flagrado em um ponto de venda de drogas, também na zona leste da capital paulista.

Para chegar à conclusão, a Polícia Civil se baseou apenas no depoimento de Jhonny, que afirmou ter se envolvido em ocorrências ainda na adolescência —ele chegou a ser apreendido após ser acusado de participar de um roubo a um comércio antes dos 18 anos.

O crime é de grande nocividade e exige a segregação (...). Jhonny desde menor é afeto [sic] a esta prática [criminosa], aparentemente a única forma que conhece para sua subsistência"
Boletim de ocorrência da Polícia Civil após prisão em maio

As infrações cometidas quando ainda era adolescente voltaram a ser citadas no pedido de conversão da prisão em flagrante para preventiva encaminhado pelo Ministério Público à Justiça apenas um dia após esta primeira prisão.

"[Jhonny tem] uma grande incursão em atos infracionais na Justiça da Infância e Juventude, o que demonstra a sua periculosidade e sua personalidade voltada ao crime", disse o MP em um dos trechos. "A conversão da prisão preventiva é necessária para a garantia da ordem pública", concluiu.

Na ação, agentes do 41º Distrito Policial haviam prendido em flagrante dois suspeitos em um ponto de venda de drogas após uma denúncia anônima. Com Jhonny, os policiais encontraram R$ 70 em cédulas e anotações atribuídas à contabilidade do tráfico.

Já o comparsa dele, um homem de 37 anos que alegou ser morador de rua, estava com 52 papelotes de cocaína, 14 pedras de crack e 18 porções de maconha. Ambos admitiram envolvimento com o comércio de entorpecentes —em depoimento, afirmaram que recebiam R$ 90 por dia para atuar no ponto de venda de drogas.

A Justiça atendeu o pedido do MP de conversão da prisão em flagrante em provisória. Contudo, a Defensoria Pública recorreu. Em 31 de maio, três dias após o flagrante, Jhonny e o outro homem preso no local passaram a responder ao processo em liberdade provisória.

Juíza alega 'quebra de confiança'

O processo anterior por tráfico foi mencionado na tarde da última quarta-feira (1º). Serviu para sustentar a conversão da prisão em flagrante em preventiva na audiência de custódia realizada no Fórum Criminal da Barra Funda após a ocorrência em que foi algemado junto à moto de um policial militar.

Para a juíza Julia Martinez Alonso de Almeida Alvim, Jhonny "quebrou a confiança" da Justiça por ter sido novamente detido sob a acusação de envolvimento com o tráfico de drogas.

A magistrada não viu ilegalidade na prisão, flagrada em vídeo na última terça-feira (30). Segundo o advogado Fábio Costa, que representa o jovem, o policial militar que o prendeu disse que ele iria "correr uma maratona" antes de algemá-lo no baú da moto da corporação. Após a decisão, Jhonny foi levado ao CDP (Centro de Detenção Provisória) de Chácara Belém, na zona leste.

No boletim de ocorrência, ao qual o UOL teve acesso, os policiais militares envolvidos na ocorrência não mencionaram que o rapaz foi algemado à moto de um deles e arrastado antes de ser levado até o 56º Distrito Policial, onde foi registrada a prisão em flagrante por tráfico de drogas.

Estigma do crime: o que dizem os especialistas

Ouvidor das polícias de São Paulo, o advogado Elizeu Soares Lopes vê racismo nas ações. "A imagem na moto lembra do período da escravidão, quando os negros eram submetidos a esse tipo de humilhação e constrangimento. A sociedade precisa também observar as condições sociais desse jovem. Será que o Estado não negligenciou direitos?", questiona.

Vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o advogado Arnobio Rocha questiona o que entende ser um "determinismo" da Polícia Civil.

"Eventuais delitos cometidos quando era menor infrator não podem ser tratados como antecedentes criminais. Há aí uma condenação prévia e um determinismo por características que se encaixam no perfil criminoso", analisa.

Ao tratar o envolvimento com o tráfico como a única forma de subsistência, a Polícia Civil descarta elementos como educação, inclusão social e busca por emprego por um jovem com 18 anos. 'Ah, esse não vai ser nada na vida, é um a menos'. Isso explica a alta mortalidade em ações policiais da juventude negra e periférica"
Arnóbio Rocha, Comissão de Direitos Humanos da OAB

Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, o advogado Ariel de Castro Alves Ariel entende que o episódio ilustra a criminalização dos jovens negros e pobres no país. "Quando o acusado é negro e vive em um cenário de exclusão social, ele já é rotulado como criminoso. Só existe presunção de inocência no Brasil para as pessoas de classes mais abastadas. Para os pobres, isso é uma ficção", critica.

Ele entende ainda que o caso seria tratado de outra forma se a cena do jovem negro algemado junto a uma moto da PM não tivesse sido gravada. "Seria só mais uma situação corriqueira de um jovem que é vítima de violência policial que vai preso sem que ninguém saiba que ele existe".

cabo, jocelio - Reprodução - Reprodução
Cabo Jocelio Almeida de Sousa, 34 anos, identificado como o policial que aparece nas imagens conduzindo a moto com um suspeito algemado
Imagem: Reprodução

PM que conduziu a moto foi afastado das ruas

O cabo Jocelio Almeida de Sousa, 34 anos, identificado como o policial que aparece nas imagens conduzindo o veículo, pode responder pelos crimes de tortura, racismo e abuso de autoridade. Já o soldado Rogério Silva de Araújo, 39, que também participou da ocorrência, pode responder por prevaricação.

A PM disse que abriu inquérito para apurar o caso e afastou o cabo das ruas. A reportagem telefonou para Jocelio, mas ele não quis se manifestar e desligou em seguida. Já o soldado Rogério não foi localizado para apresentar a sua versão.

Na gravação, é possível ver o homem correndo atrás da moto. Pessoas por trás da câmera dão risada e uma delas debocha: "Olha, algemou e está andando igual a um escravo. Vai roubar mais agora?", questiona.

A investigação também está sendo acompanhada pela Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e pelo Grupo Tortura Nunca Mais.