Boate Kiss: 'Virei monstro de um dia para outro', diz dono da casa noturna
O dono da boate Kiss Elissandro Spohr disse que entrou em desespero à medida que aumentava o número de mortos na casa noturna, na madrugada de 27 de janeiro de 2013. O empresário disse que, inicialmente, ajudou na retirada das pessoas, mas deixou o local ao receber de uma pessoa que ele considerava sua amiga um tapa na cara. Em seguida, foi até uma delegacia.
"Eu não sabia o que fazer, onde eu ia, não tinha explicação, não tinha, não tinha explicação e aí eu escutei 30 pessoas [mortas] e eu cheguei a vomitar. E eu disse: 'Meu Deus, cara, como morreu 30 pessoas, cara? E começou na rádio, aumentar, aumentar o número de pessoas [mortas]", relatou o dono da casa, conhecido como Kiko, no oitavo dia de julgamento dos réus acusados pelo incêndio. Ele foi o primeiro dos réus a ser ouvido no tribunal.
Eu não quis isso, eu não escolhi isso, desculpa, desculpa de coração porque eu tenho que me conter, mas eu não tenho mais, não aguento mais. Hoje eu sou pai e eu sei que minhas filhas um dia vão ir [para a boate] e vão ir e eu não sei se eu vou conseguir deixar."
Elissandro Spohr, dono da boate Kiss
"Isso não deveria ter acontecido, não deveria ter acontecido, eu sei que não deveria ter acontecido. Por que isso ia acontecer na Kiss? Era uma boate boa, onde todo mundo gostava de trabalhar. Eu virei monstro de um dia para outro. E fui preso. E eu sei que morreu gente, eu estava lá, ninguém me falou, eu estava lá."
Spohr chegou a se virar a cadeira e falar diretamente para a plateia, mas havia poucos familiares na sala.
"Eu sei que vocês me odeiam, que vocês acham que eu matei, que eu queria machucar, acham que é fácil para mim? Não é fácil. Eu não consegui pedir desculpa, eu ia procurar quem? Eu ia falar com quem? (....) Pessoas que eram meus amigos, cheio de amigos, me mandaram mensagem me mandando me matar e eu ia me matar."
O empresário chorou bastante e pediu para ser preso.
"Eu estou cansado. Eu sei que perderam gente, mas eu perdi um monte de amigos, eu perdi funcionários, vocês acham que eu não tinha amigo lá? Acha que eu ia fazer uma coisa dessas, cara? Tu acha que o Marcelo [de Jesus, músico da banda que usou o artefato como fogo] ia tentar apagar o troço se ele quisesse matar alguém. Tu acha que o Luciano [Bonilha, outro réu]? Por que eu ia fazer isso? E não é fingimento, eu não aguento mais cara, eu tava tremendo cara, eu estava sem ar, eu tive que ir lá pegar ar para pegar esse depoimento", prosseguiu, sendo interrompido pelo juiz que pediu um intervalo.
Dono nega ter autorizado uso de fogos
No início do depoimento, ele negou ter conhecimento sobre o uso de fogos de artifício pela banda Gurizada Fandangueira na casa noturna. "Ninguém me falou que fizeram", disse o empresário sobre o uso dos artefatos pirotécnicos.
Disse que o uso de fogos no dia da tragédia ocorreu sem sua autorização. Disse ainda que, caso fosse consultado, iria analisar o emprego dos artefatos, mas provavelmente não permitiria por causa das cortinas próximas ao palco. Ele reconheceu que eram utilizados sinalizadores nas espumantes, o que foi flagrado em vídeo e seguidamente mostrado pela promotoria durante o julgamento.
Kiko afirmou que a boate era seguidamente fiscalizada e que, em uma vez, seis policiais entraram na casa noturna, armados. Naquele dia, estava apenas funcionando o pub e não havia muitos frequentadores no local. Na ocasião, foi solicitado as carteiras dos seguranças da casa —ao todo havia 27 trabalhando no estabelecimento.
O empresário disse que, inicialmente, as reclamações do barulho da boate se deram com apenas uma vizinha e que ele tentou resolver de várias maneiras, inclusive fazendo intervenções na casa dela. Em uma das reformas, foram gastos R$ 250 mil —R$ 60 mil só no pagamento de mão de obra.
Mesmo com a mudança do palco de lugar, os problemas continuaram. Outra vizinha passou a reclamar do barulho. O empresário disse que voltou a procurar o engenheiro contratado da outra vez para resolver o problema. Porém, após um contato inicial, o profissional parou de atender as ligações.
Ele conta que colocou as espumas que haviam sido retiradas antes, porém achou o resultado feio e pediu para retirar tudo. Um novo material foi comprado. "O plano era para ter colocado por todo o teto, inclusive nas laterais."
Sem respostas para a promotora
Spohr não respondeu aos questionamentos da acusação, nem dos advogados dos outros reús, seguindo orientação de seu advogado, Jader Marques. A promotora Lucia Helena Callegari, que atua no julgamento, disse que a conduta já era esperada.
Lucia Helena acredita que o julgamento se encerre entre sábado e domingo. "Posso estar enganada, mas acho que cada jurado tem sua decisão tomada. Que agora o pouco que puder é consolidar ideias e consolidar seus convencimentos."
O julgamento
Quase nove anos após a tragédia, quatro réus são julgados por 242 homicídios simples e por 636 tentativas de assassinato —os números levam em conta, respectivamente, os mortos e feridos no incêndio. Devido ao tempo de duração e estrutura envolvida, o júri é considerado o maior da história do Judiciário gaúcho.
Na manhã de hoje, prestou depoimento o ex-prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer (MDB) que desqualificou a investigação da Polícia Civil ao dizer que o inquérito era "muito ruim" e que foi feito pela imprensa. As declarações do político provocara a saída dos familiares que acompanhavam o julgamento —uma delas recebeu atendimento médico.
Após Schirmer, prestaram depoimento Geandro Kleber de Vargas Guedes e Fernando Bergoli. Em seguida, passou a ser ouvido o promotor Ricardo Lozza, que disse que não recomendou o uso da espuma na boate Kiss. E, por último, um dos sócios da boate Kiss Elissandro Spohr.
Com eles, já chega a 29 o número de pessoas que falaram no julgamento.
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