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Por que os condenados pelo incêndio na boate Kiss estão em liberdade?

Leonardo Martins

Do UOL, em São Paulo

10/12/2021 22h33

Os quatro homens condenados pelo incêndio na boate Kiss, que matou 242 pessoas e feriu outras 636, receberam penas entre 18 e 22 anos de prisão. Mas, ao terminar de anunciar suas condenações, o juiz do caso recebeu um habeas corpus (HC) preventivo em nome de um dos réus e estendeu a todos o benefício de responder em liberdade.

Advogados criminalistas consultados pelo UOL explicam que eles permanecerão soltos porque o caso ainda será analisado por esferas superiores do poder judiciário — como o STF (Supremo Tribunal Federal).

O juiz Orlando Faccini Neto condenou, em primeira instância, por dolo eventual (quando, mesmo sem intenção, assume-se o risco de matar) os dois sócios da boate —Elissandro Callegaro Spohr, conhecido por Kiko, e Mauro Londero Hoffmann— e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira —o produtor Luciano Bonilha Leão e o vocalista, Marcelo de Jesus dos Santos.

As penas foram definidas assim:

  • Elissandro Spohr - 22 anos e seis meses de prisão;
  • Mauro Hoffmann - 19 anos e seis meses de prisão;
  • Luciano Bonilha - 18 anos de prisão;
  • Marcelo de Jesus - 18 anos de prisão.

Foi a defesa de Elissando Spohr que entrou com o pedido de habeas corpus, que será analisado por uma Câmara Criminal, ainda sem data marcada. Três desembargadores decidirão sobre a validade do pedido.

O advogado e professor da PUCRS, Fabiano Clementel, explica que os habeas corpus são conhecidos como "remédios constitucionais" para evitar prisões ou ameaças de prisões ilegais.

"Entendeu-se que, se fosse realizada a prisão, ela seria ilegal. Por isso, a defesa recorreu para HC preventivo, que traz a suspensão do início imediato da pena até o julgamento do HC", afirma.

A discussão sobre iniciar a cumprir uma pena antes do "trânsito em julgado" ganhou força com a Operação Lava Jato e, principalmente, no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A expressão significa que uma pessoa só pode começar a cumprir a pena (sendo presa) quando não cabem mais recursos judiciais em outras esferas e a ação é finalizada. Foi uma decisão do próprio STF, em 2019, que pôs fim à discussão. Antes, pessoas poderiam ser presas após condenação em segunda instância — como foi o caso de Lula.

O advogado criminalista e doutor em ciências criminais pela PUCRS, Marcelo Marcante, explica que pedidos de HC como o dos réus do caso da boate Kiss não são raros.

"Há recurso de apelação das defesas que podem, inclusive, causar a realização de um novo júri e recursos nos tribunais superiores. Alguns juízes aplicam a pena após trânsito em julgado. Então, uma bancada [de advogados] mais qualificada, onde se tem uma situação como essas, acaba, por precaução, entrando com HC para evitar que o entendimento do STF seja descumprido", disse.

Tempo de pena

A dosimetria — cálculo da pena que será imposta a uma pessoa — utilizada pelo juiz do caso também foi criticada pelos advogados por não seguir o estabelecido pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Marcelo Marcante explica que, seguindo a dosimetria estabelecida, mesmo que todas as circunstâncias judiciais fossem desfavoráveis aos réus, a pena seria de, no máximo, 14 anos. "Mas ficou em 15 anos, antes do aumento pelo número de vitimas", afirma.

"A dosimetria da pena tem critérios bem objetivos, que são matemáticos. Existem três fases dessa dosimetria da pena e cada fase corresponde a um critério de aumento para cada circunstância do caso. Para o aumento da pena, ele precisa fundamentar e observar os limites dos tribunais superiores", complementa. "É bem possível que haja redimensionamento, uma reforma desse ponto", disse.

Há também a possibilidade do júri ser refeito. "Importante destacar que a decisão dos jurados é soberana. Então o recurso da defesa tem dois objetivos: ou redução da pena ou uma anulação desse julgamento, que ele seja refeito. É uma possibilidade menor, mas existe", conclui Marcante.

Fabiano Clementel concorda. "Ele [o juiz] ignora parte daquilo que a nossa doutrina defende, que é a necessidade de estabelecer um método de cálculo que deve condicionar o magistrado no aumento da pena em caso de condenação", afirma.

"Temos, dentro da nossa teoria do direito penal, alguns posicionamentos para quantificar cada um dos elementos da condenação. Ele [o juiz] fez a dosimetria de acordo com sua convicção. O aumento na pena-base, em grande medida, pode ser considerado desproporcional. É a isso que a defesa irá se apegar", complementa.