Mansões, turismo e falta de fiscalização: o que há por trás de Capitólio
De um lado, turismo intenso, casas de alto padrão e passeios de lancha. Do outro, a falta de consenso sobre quem é o responsável por fiscalizar as paisagens que rodeiam o lago artificial de Furnas, palco da tragédia que matou dez pessoas em Capitólio (MG), com o desmoronamento de uma rocha na semana passada.
O UOL procurou o governo estadual, a empresa Eletrobrás Furnas e a Alago (Associação dos Municípios do Lago de Furnas), formada pelas cidades no entorno da região conhecida como "Mar de Minas". Todos eles informaram que não são responsáveis pela área.
O prefeito de Capitólio, Cristiano Geraldo da Silva, disse na semana passada que nunca foi feito um estudo de análise de risco geológico na região. "Acredito, assim, que para a gente olhar dentro de uma tragédia e fazer um questionamento desse não seria virtuoso. Daqui para frente, sim, a gente precisa fazer uma análise dessa", afirmou.
Nas investigações da Polícia Civil, as autoridades não conseguiram concluir ainda quem seriam os principais responsáveis pela fiscalização.
A PNPDEC (Política Nacional de Proteção e Defesa Civil), instituída pela lei 12.608/2012, prevê a responsabilidade de tomadas de decisões de reordenamento e de revisão de desastres.
"Municípios e estados devem identificar as áreas de riscos, precisam promover identificação dessas áreas, as vulnerabilidades e cabe ao município promover as fiscalizações da área de risco", explica Estefânia Fernandes, professora de hidrogeologia na UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto).
Resta saber, no entanto, se a região dos cânions é considerada uma área de risco. "Se é uma APP [área de proteção permanente] a responsabilidade é do governo do estado, que deve monitorar as áreas. Se é um terreno privado é de responsabilidade do dono do terreno", diz Fernandes.
O delegado Marcos Pimenta, responsável por presidir a investigação sobre as causas do acidente, disse em entrevista ontem que o foco não era procurar culpados, "mas sim respostas".
Em nota, o governo de Minas Gerais se limitou a dizer que área de navegação é de competência da Marinha e que "somente após a conclusão das investigações" as eventuais causas poderão ser apontadas. O governo não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre a quem cabe fiscalizar as áreas que não são de navegação.
A Eletrobrás Furnas diz que usa o lago para geração de energia e que não é responsável pela "gestão dos usos múltiplos do reservatório, como atividades de turismo e lazer".
A empresa garante ainda que cumpre "estritamente" as determinações dos órgãos reguladores, "responsáveis por planejar e operar o conjunto de reservatórios brasileiros de forma integrada". No entanto, não informou à reportagem quais seriam esses órgãos, nem a frequência que presta esclarecimentos.
O que é o lago de Furnas?
Com mais de cem quilômetros de extensão, a região é conhecida pela lagoa artificial formada a partir da hidrelétrica de Furnas, que utiliza o curso de água do Rio Grande para geração de energia.
A estatal foi criada na década de 1950 pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek e hoje atua por meio de um consórcio, com participação da iniciativa privada, não só em Minas, mas também em outros 15 estados e mais o Distrito Federal.
A lagoa, especificamente, tornou-se um destino turístico pelas cachoeiras, paisagens naturais e possibilidade de passeios de lancha e jet-ski. Trata-se de uma área cercada por 39 cidades, que integram a Alago, associação criada para atuar na preservação local.
No entanto, a atuação não se estende à vistoria dos elementos que compõem a paisagem.
"Realmente, esta discussão de responsabilidade aflorou nesse momento de tragédia, mas ainda não se tem um consenso de quem deve ser", disse ao UOL o secretário-executivo da Alago e vice-presidente da bacia hidrográfica de Furnas, Fausto Costa.
Costa entende que isso não deve cair na conta das 39 prefeituras, já que elas "não têm a propriedade do local".
O que pode ter provocado a tragédia
Uma análise completa e segura do que pode ter ocasionado o desmoronamento da rocha em Capitólio só poderá ser feita após a conclusão do inquérito, afirma a professora da UFOP. Fernandes explica que algumas hipóteses podem ser estudadas como o "desplacamento natural" da rocha.
O cânion, segundo ela, é uma formação natural de centenas de milhares de anos, que passa por diferentes processos, além de alterações climáticas. "Em fotos divulgadas antes do desplacamento era possível ver que a base do maciço parecia oca no pé, que faltavam alguns blocos e esses blocos caíram e deixou [a estrutura] instável", diz a professora.
A cabeça d'água (quando uma forte chuva cai em determinado local) que descia na cachoeira diminuiu, o que possibilitou que mais barcos chegassem na região. "Acredito que a pressão dessa água promoveu trepidação, aumento de energia e isso pode ter acelerado a instabilidade do maciço", explica Fernandes.
Para a professora, não é possível evitar um acidente natural com "corpos sólidos", pois não existe tecnologia para prever horário ou dia do acontecimento. Cabe, porém, ao responsável fazer a identificação e o zoneamento da área de risco.
É preciso colocar na balança, ver qual é a verba disponível, se o ideal é isolar a área, como aconteceu no Véu das Noivas, um acidente parecido, onde hoje é proibida a entrada na cachoeira pela parte de baixo."
Estefânia Fernandes, professora de Geologia da UFOP
Segundo a Sociedade Brasileira de Geologia, o Brasil ocupou na última década o 5º lugar entre os países do mundo em número de vítimas associadas a eventos geológicos ou geotécnicos. Foram mais de 41 milhões de pessoas afetadas e 42 eventos de grande magnitude registrados.
A sociedade disse, em nota, que o caso de Capitólio "expõe um grave problema" do país: a falta de "laudos geológicos e geotécnicos para identificar e tipificar" possíveis riscos. Além disso, os estudos podem determinar as restrições de uso e os procedimentos de segurança.
Chapada de Guimarães
Em 2008, um acidente parecido com o de Capitólio aconteceu na cachoeira do Véu da Noiva, no Parque Nacional de Chapada dos Guimarães (60 km de Cuiabá), no Mato Grosso. O desplacamento da rocha deixou quatro pessoas feridas e uma adolescente morreu.
"O desplacamento não atingiu as pessoas, mas o ricocheteio das pedras atingiu o grupo de turistas. Hoje o local é um geoparque, tem um mapeamento geológico e as pessoas não podem mais acessar a cachoeira pela parte de baixo", explica a professora da UFOP.
Em Capitólio, segundo Fernandes, não bastava só não estar perto, mas ter uma zona de proteção para que, quando os pedaços se partissem, não atingissem ninguém.
Região é turística e também abriga casas de alto padrão
Com cerca de 8,6 mil habitantes, Capitólio quadruplica a sua população na alta temporada ou em feriados. Na plataforma Airbnb, há passeios de lancha que cobram R$ 190 por pessoa para visitar o cânion. Outras agências consultadas pela reportagem cobram entre R$ 170 e R$ 200 pelos passeios —o preço é definido pelo tempo de duração.
Especialistas avaliam que havia um descontrole das atividades turísticas no local onde ocorreu o acidente: congestionamento de lanchas, barcos circulando de ré, passageiros sem coletes salva-vidas e músicas altas nas embarcações, o que pode ter levado alguns guias a não ouvirem os gritos para interromper os passeios no momento em que a estrutura rochosa caiu.
Além do turismo, a área também abriga condomínios de luxo e casas de alto padrão, com moradores que circulam pelo lago em barcos, lanchas e jet ski. A moto aquática é um dos atrativos da área, levando a prefeitura de Capitólio a sediar uma etapa do Brazil Cup de jet ski em novembro de 2021.
O luxuoso bairro de Escarpas do Lago, localizado no município, tem um dos dez imóveis mais caros do país, segundo ranking da Forbes feito a partir de hospedagens do Airbnb. A diária de uma mansão no local — sem taxas de limpeza e de serviço inclusas — sai a R$ 12.500. Para se hospedar na residência é obrigatório fazer uma reserva de, no mínimo, dois dias.
Nenhum órgão é capaz de responder quem pode evitar, no futuro, outra tragédia.
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