Congestionamento na Barra da Tijuca trouxe à tona a morte de Moïse
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Chico Buarque descreve em Construção um dia na vida de um operário que morreu "atrapalhando o sábado". A história guarda semelhança com a forma como o espancamento de Moïse Kabagambe chegou à imprensa —cinco dias após a morte, o crime só rompeu a apatia porque um protesto da família "atrapalhou" o trânsito da Barra da Tijuca em 29 de janeiro.
O crime brutal atualiza a canção-crônica de Chico lançada em um "não tão longínquo" 1971 —a indiferença é o ponto de contato dos dois casos, com o agravante que o trabalhador da música morre ao cair de uma construção civil, enquanto Moïse foi vítima de barbárie.
Não fosse o incômodo de um congestionamento, quiçá não conheceríamos a história de Moïse.
Não fosse a lentidão do trânsito naquela tarde prosaica, quem sabe agora —mais de dez dias após o assassinato— os envolvidos no crime seguissem suas rotinas nos quiosques do posto 8 da Barra da Tijuca, dormindo na praia e ganhando precariamente comissão sobre as vendas de caipirinhas.
O engarrafamento na avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca, se estendia até o Recreio naquele sábado chuvoso, e a imprensa quis saber a causa do trânsito à beira-mar.
O motivo era um protesto, com pouca gente, em frente a um quiosque da orla a apenas 5 km do condomínio Vivendas da Barra, onde o presidente Jair Bolsonaro (PL) possui uma casa.
A história do congolês morto a pauladas após ter ido cobrar R$ 200 em diárias atrasadas do quiosque Tropicália foi veiculada no noticiário local da TV Globo na noite daquele sábado.
Antes disso, a morte de Moïse permaneceu invisível por cinco dias e a investigação pouco avançou.
O perfil Comunidade Congolesa no Rio de Janeiro no Facebook informou o homicídio em 25 de janeiro, dia seguinte ao crime, em um post escrito em francês. O alcance foi limitado.
Não fosse a desobediência à orientação policial por parte de um pequeno grupo de congoleses, talvez a barbárie que nos remete à escravidão ainda estivesse desconhecida. O protesto no quiosque —motivado pela demora na ação da Polícia Civil— dividiu a comunidade congolesa no Rio.
A polícia falou para que não fossem ao quiosque —que estaria sendo monitorado—, mas, como ninguém havia sido preso até então, os congoleses decidiram fazer o ato a fim de chamar a atenção para o caso e cobrar justiça. Deu certo.
Após a manifestação com parentes e amigos de Moïse e a primeira reportagem —apenas um link com a notícia circulou nas redes sociais no sábado—, o crime bárbaro foi se revelando ao país.
Três dias depois do protesto, na terça-feira (1º), o caso já somava 849 menções em veículos de imprensa, com 278 mil compartilhamentos nas redes sociais, segundo mostra levantamento feito pelo analista de mídias Pedro Barciela a pedido do UOL.
Nesse mesmo dia, a Polícia Civil do Rio prendeu três homens que admitiram envolvimento no crime.
O assassinato aconteceu em uma área abastada, a poucos metros do mar da Barra da Tijuca. O bairro está longe de ser um dos lugares mais violentos do Rio, mas a brutalidade do espancamento de Moise não pareceu abalar quem passou pelo quiosque e continuou tomando seu refrigerante.
Esse é o corpo de um homem jovem, negro, imigrante. Esse corpo não pertence à Barra, nem tem pertences na Barra. A cidade entende que ali não é o lugar para aquele tipo de pessoa circular --a não ser que ela esteja servindo
Juliana Farias, antropóloga e pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial da FGV
A tragédia de Moïse encontra ecos na de Carlos Eduardo Pires de Magalhães, 40. Há pouco mais de um ano, o morador de rua pediu socorro em uma padaria.
Foi ignorado até o seu último suspiro, quando caiu morto dentro do estabelecimento sem receber ajuda.
O corpo foi coberto com um pedaço de plástico preto —permanecendo invisível para quem circulava próximo à praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, zona sul do Rio—, e a padaria continuou a funcionar.
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