'Não é a polícia que é racista, é o Brasil', diz ouvidor das polícias em SP
Criada em 1995 para encaminhar e acompanhar denúncias de arbitrariedade policial, a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo vive hoje um dilema: é comandada por um advogado negro de 51 anos, saído dos movimentos sociais, que após dois anos de mandato virou alvo do conselho de direitos humanos responsável por entregar ao governador a lista com os nomes que podem sucedê-lo. Para o Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), Elizeu Soares Lopes afaga o comando das polícias enquanto dá as costas aos movimentos sociais.
Nascido no Vale do Jequitinhonha (MG) e criado numa casa de dois cômodos no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo, Lopes diz que a proximidade com as forças policiais é na verdade sua "principal marca" na Ouvidoria, porque "os mais vulneráveis precisam de um ouvidor que seja respeitado pelo comando das polícias".
Não sei se é porque eu sou o primeiro negro [ouvidor] e infelizmente as pessoas não estão acostumadas com negros em posição de destaque. Mediar tensões na sociedade não significa ser negligente, contemporizar com ações equivocadas da polícia."
Elizeu Soares Lopes, ouvidor das polícias de São Paulo
O ouvidor recebeu o UOL em seu gabinete na quarta-feira (25), um dia depois da ação policial no Rio de Janeiro que deixou 23 mortos e que ele considerou "uma tragédia humana".
As fortes críticas à polícia fluminense contrastam com a avaliação que faz da polícia paulista, sob sua fiscalização. Lopes isenta a polícia dos supostos excessos na ação que espalhou usuários de crack pelo centro de São Paulo no começo do mês e da dificuldade em acabar com o tráfico, que há 30 anos prospera na região: "É problema grave de saúde pública".
Criador de um grupo de trabalho para discutir o racismo na polícia, ele comemora a queda na letalidade policial após a adoção de câmeras no uniforme. Mas, quando questionado sobre racismo policial, o ouvidor tangencia.
Não é a polícia que é racista, nosso Brasil é racista. Nós encontramos racismo na polícia, no Poder Judiciário, no Ministério Público, na escola, na saúde, no cinema, nas propagandas."
Elizeu Soares Lopes, ouvidor das polícias de São Paulo
A seguir, leia os principais trechos da entrevista:
UOL - O Condepe é contrário a sua permanência no cargo de ouvidor. Diz que o senhor ficou distante dos movimentos sociais e assumiu o papel de articulador com o governo, e não o de controlador externo da polícia. O que acha dessa avaliação?
Elizeu Soares Lopes - A crítica é injusta. Eu sou vítima de racismo institucional. Não sei se é porque eu sou o primeiro negro [ouvidor] e infelizmente as pessoas não estão acostumadas com negros em posição de destaque. O fato de eu mediar as tensões na sociedade não significa ser negligente, contemporizar com ações equivocadas da polícia.
Não deixei de ir a nenhuma ação em que fui demandado por movimento social. Fui na favela do Moinho duas ou três vezes na pandemia, contra a vontade da minha assessoria técnica. Fui com a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e o Sindicato dos Advogados, mas não vi o Condepe lá. O conselho precisa compreender que há estilos diferentes de ser ouvidor.
Compreendo que o papel do ouvidor é exatamente fazer mediação junto às polícias. Os mais vulneráveis não querem só um ouvidor para esbravejar perante às câmeras. Eles precisam de um ouvidor que seja respeitado pelo comando das polícias e pela Secretaria de Segurança Pública.
A semana começou com 23 mortos em uma ação policial no Rio de Janeiro. O que achou da operação?
A ação no Rio foi uma tragédia humana. É lamentável que essas incursões [em favelas] ocorram como se estivéssemos em guerra. Só que nas guerras se permite que inocentes saiam do conflito por corredores humanitários, e a gente assiste a isso [no Rio]? Será que a gente veria cenas assim no Alto da Lapa, no Morumbi, na Barra da Tijuca, Copacabana?
Se essas incursões dessem conta de acabar com milícias, que são ex-policiais bandidos, e de acabar com o tráfico, não teríamos crime organizado no Rio. A população fica na fronteira entre milicianos e o crime organizado. As maiores apreensões de entorpecentes, armas e desmantelamento de atividades criminosas se dão silenciosamente, sem um tiro. Inteligência é a principal técnica policial.
A violência policial em São Paulo é comparável à da polícia do Rio?
Felizmente não temos esse tipo de ação aqui em São Paulo. Claro que às vezes acontece, mas isso não faz parte do cenário daqui, porque não é eficaz. Há quantos anos se faz essas incursões no Rio? Aqui se usa mais de inteligência policial. Às vezes há exagero de uns e outros em São Paulo, que tem problemas, mas a ação é mais técnica, imperam os protocolos. Os casos que aparecem são de policiais que fogem do protocolo de ação da PM.
Uma ação conjunta das polícias para acabar com a "cracolândia" em São Paulo resultou em inúmeras denúncias de violência aos dependentes e moradores de rua; um homem foi morto pela Civil. O que achou da ação policial?
A PM não participou das primeiras ações. Eles usaram as câmeras portáteis no uniforme, uma ferramenta para dirimir qualquer controvérsia. Seria leviano creditar [a violência] à PM. Como há situações de crime, o Estado tem de agir, mas precisa ser cirúrgico, contra o traficante. Mas o problema na "cracolândia" está longe de ser policial. É um problema grave de saúde pública. O Estado precisa ter elementos mais objetivos para tratar a saúde mental dessas pessoas e apontar perspectivas.
A venda de drogas à luz do dia já voltou à "cracolândia", que existe há três décadas. Por que a inteligência policial não conseguiu até hoje impedir a comercialização de crack no centro de São Paulo?
Não dá para simplificar uma situação complexa como essa. Os efeitos colaterais podem ser agravados por alguma medida tomada. É preciso tratamentos multidisciplinares. Eu acho que a polícia faz [um trabalho de inteligência]. Seria não reconhecer o esforço que a polícia tem feito. Você vê muitos traficantes sendo presos, não dá para dizer que não tem uma atividade ali.
Agora, vai ser uma ação permanente porque as pessoas se aglomeraram em situação de degradação. São problemas de outras áreas que viram problemas de segurança pública como efeito colateral. A ação mais importante não é da polícia, mas da saúde pública.
A letalidade policial e a morte de agentes em ação caíram nos batalhões que adotaram câmeras portáteis em seus uniformes. O que achou dessa medida?
É uma conquista civilizacional. Concedemos a esses servidores um poder muito grande que pode, no limite, atentar contra uma vida. Ele precisa ser disciplinado, estar sob vigilância, ter parâmetros de proporcionalidade. A polícia no mundo foi colocada em xeque após a morte do [americano] George Floyd [pela polícia em 2020]. Não é um problema de São Paulo, do Brasil. É do mundo. Que polícia nós queremos?
As câmeras são importantes também para o policial, que às vezes sofre constrangimento de superiores hierárquicos. Diante de um policial com câmera, o superior não vai destratar o policial. Isso veio para ficar, até porque somos filmados o tempo todo. Se as pessoas podem filmar com celular, é melhor que a polícia também possa. Se alguém procurar a Ouvidoria, vamos requisitar as imagens. É um instrumento de provas. E vamos reduzir ainda mais a letalidade, com todos os policiais em operação usando câmera.
Alguns candidatos a governador de São Paulo [Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Márcio França (PSB)] falaram em retirar as câmeras dos uniformes. O que o senhor diria a eles?
Vão perder as eleições. Essa ideia de uma polícia beligerante é coisa do passado. Estão olhando para a ditadura militar. Quem tem medo de câmera? Ninguém. Nem o policial que atua na legalidade, muito menos o cidadão. As pessoas são mais equilibradas em intervenções em que policiais usam câmeras. Imagina se o sujeito de Alphaville [na Grande São Paulo] que hostilizou um policial [em 2020] teria aquele comportamento se soubesse que era gravado. No geral, comportamentos não cordiais com a polícia ocorrem nas regiões mais ricas, não na periferia.
Outra boa notícia é a redução de homicídios no estado. Concorda com a tese de que essa redução se deve à entrada do PCC nas favelas de São Paulo, que monopolizou o crime e reduziu os conflitos e mortes nas comunidades?
Eu não acredito nessa tese. É preciso ver outros elementos. Nos últimos anos tivemos aumento real do salário mínimo —despencou de quatro anos para cá—, diminuímos a pobreza extrema, temos mais gente no mercado de trabalho e nas universidades. Credito a diminuição da violência a esse melhor arranjo. Eu respeito essa tese, mas não acho que esse seja o único fator.
O Brasil vem assistindo à flexibilização da posse de armas. Acha que um população armada se protege melhor da criminalidade?
Isso é uma falácia, uma bobagem. Isso tem mais a ver com o lobby de clubes de arma e da indústria de armas. Esses dias um policial foi morto. O sujeito chegou para assaltar, viu que era um policial e matou. O agente estava com uma arma. Em uma ação criminosa, ninguém te avisa que vai roubar para que você pegue sua arma. É um argumento ridículo, primário. Essa flexibilização é caminho para que essas armas caiam nas mãos de organizações criminosas. A polícia é contra. A segurança pública não é um problema individual, mas de Estado. Vamos voltar aos duelos, ao faroeste?
A associação do bolsonarismo à polícia é incentivo para que os agentes cometam excessos?
Acho que é o [presidente Jair] Bolsonaro quem tenta se associar às forças militares. Preferências partidárias todo mundo tem, mas a sociedade não pode ser dividida entre direita e esquerda. Ela é dividida entre extrema pobreza e gente com muito dinheiro. Essa divisão que quer o principal líder do país é uma "forçação de barra". As instituições da polícia têm muitos anos e não são de governo, são de Estado. Incentivar essa ideia de colar a imagem de Bolsonaro às polícias é um desserviço às instituições. Os governantes passam e elas ficam, e foi isso o que ouvi dos comandantes da polícia em São Paulo.
O senhor criou na Ouvidoria um grupo de trabalho para combater racismo nas polícias de São Paulo. No Brasil, oito em cada dez mortos pela polícia são negros. Por que as polícias são racistas?
Porque o Brasil é racista. Não é a polícia que é racista, nosso Brasil é racista. Nós encontramos racismo na polícia, no Poder Judiciário, no Ministério Público, na escola, na saúde, no cinema, nas propagandas. Nós, negros, não somos vistos, não usamos xampu, nossos filhos não comem danone. Ficamos fora das escolas de propaganda e marketing. Isso é um problema policial? Isso é um problema do racismo estrutural da sociedade brasileira, e evidentemente está no seio da polícia, assim como no da medicina. Se não é correto dizer que o sistema de saúde é racista, não dá para dizer que a polícia é racista.
Mas a polícia tem arma, né?
A violência contra uma criança negra na escola mata mais do que uma arma. Você tira a capacidade de crescimento, principalmente nos primeiros anos, quando ela sai da família para ir à escola e precisa ser acolhida. Fui fazer um debate sobre a história da África e população negra no mundo. Antes do debate, fiquei estacionado na porta de uma escola. Hoje em dia tem a figura de uma pessoa que acolhe as crianças na porta. Todas as crianças que tiveram abraço e beijinho eram brancas. Nenhuma era negra. Isso é tão violento, que vai matando essa criança aos poucos.
Temos racismo na polícia como temos em outras instituições. A instituição que mais emprega negro no Brasil é a PM. Temos mais de 20% de oficiais negros em São Paulo. Qual outra instituição tem tantos negros assim? O Ministério Público? A magistratura? Atribuir racismo a uma ou outra instituição é injusto. Claro que os efeitos da ilegalidade policial são danosos a quem pode perder a vida. Por isso são necessárias a Ouvidoria e as Corregedorias de polícia. É verdade também que se pune. Nas instituições públicas, não conheço instituição que pune mais do que as polícias.
O senhor já sofreu racismo da polícia?
É claro, como em todo o lugar já sofri racismo. Evidentemente sofri também por parte de policial, mas também de advogado. Em restaurante, em supermercado. Na periferia, os pais ensinam sobre essa convivência, o que mitiga os efeitos de uma ação racista da polícia.
Muitos defendem a desmilitarização da PM. O senhor concorda?
Essa tese ganhou força no fim do regime militar. O problema não está em se a polícia é militar ou não. O problema está no seguinte: a polícia não pode ver os cidadãos como alvo, ao mesmo tempo em que os cidadãos não podem tratar a polícia como inimiga. Alimentar isso não contribui para a sociedade. Claro que a polícia [militar] foi fundada para perseguir os escravos, que era a fonte de riqueza da sociedade. Isso foi mudando e precisa mudar ainda mais. O problema não está na forma, mas em como ela age com a população. O fato de ser militar significa que ele está fora dos parâmetros da lei? Não.
E como tornar a formação policial mais humana se a cúpula militar tem fama de punitivista?
O sujeito já tem 18 anos quando entra na polícia. Já cursou o ensino médio, já vem formado para a corporação. Será que não precisamos melhorar a formação da nossa sociedade na escola? Uma coisa é formar o indivíduo a partir do primeiro ano de vida e outra é fazer isso depois dos 18 anos, que já vem com conceitos que não são da polícia.
Nos protocolos policiais, não têm nenhum pregando violência. Precisamos de uma formação melhor. Precisamos de médicos, juízes mais humanos. Muitos são presos injustamente pela polícia e depois confirmados pelo Judiciário. Precisamos construir desde o primário escolar uma visão de direitos humanos.
Qual a sua marca à frente da Ouvidoria?
Uma das marcas foi certamente as câmeras em uniforme policial, que incentivei, apoiei e defendi. Mas minha principal marca foi a mediação. Eu compreendo que a Ouvidoria é um instrumento de interlocução da sociedade civil com o sistema de segurança pública. Uma marca que me permitiu dialogar com a polícia, fosse respeitado e ouvisse a sociedade. E não é fácil triangular em uma situação tão complexa. Isso se deve fundamentalmente à minha experiência de vida, desde a infância.
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