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'Escudo dos povos indígenas': quem era Bruno Pereira, morto na Amazônia

O indigenista Bruno Araújo Pereira esteve em expedição pela Amazônia antes de se encontrar com o jornalista inglês Dom Phillips - Arquivo pessoal
O indigenista Bruno Araújo Pereira esteve em expedição pela Amazônia antes de se encontrar com o jornalista inglês Dom Phillips Imagem: Arquivo pessoal

Herculano Barreto Filho

Do UOL, em São Paulo

15/06/2022 21h59

O indigenista Bruno Araújo Pereira, servidor licenciado da Funai (Fundação Nacional do Índio) assassinado na Amazônia (AM) ao lado do jornalista Dom Phillips, correspondente do jornal The Guardian, era apontado como um defensor dos povos indígenas e atuante na fiscalização de invasores, como garimpeiros, pescadores e madeireiros.

Mesmo após ser exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Pouco Contato da Funai, em outubro de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, ele não se afastou da região, onde seguiu atuando como consultor da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari).

Amigo de Bruno, o líder indígena Manoel Chorimpa se recorda de quando o conheceu, há 12 anos, quando assumiu o cargo de coordenador na Funai. "Ele se adaptou rápido [ao convívio com os povos indígenas], porque já tinha experiência de campo", lembra.

Era um escudo dos povos indígenas, porque fazia o enfrentamento aos invasores. O Bruno já previa que isso poderia acontecer. Ele deu a vida para que houvesse a continuidade da proteção do nosso território. A morte dele é um símbolo para que a gente continue a nossa luta"
Manoel Chorimpa, líder indígena

O último encontro com Bruno

Chorimpa revelou detalhes do último encontro com Bruno, pouco antes do encontro dele com Dom. Ele disse ter se encontrado com Bruno em Manaus no dia 15 de maio para visitar territórios indígenas. "Viajamos até o dia 1º de junho. No dia seguinte, ele se encontrou com Dom Phillips".

Nas duas semanas de viagem, Chorimpa relatou a preocupação de Bruno com as ameaças de morte que vinha sofrendo. "Ele sofre ameaças desde a época em que deflagrou operações com garimpeiros e pescadores que entram na reserva", disse sobre Bruno, que convive há 12 anos com os povos indígenas.

Bruno Pereira esteve em expedição pela Amazônia antes de se encontrar com o jornalista inglês Dom Phillips - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Bruno Pereira esteve em expedição pela Amazônia antes de se encontrar com o jornalista inglês Dom Phillips
Imagem: Arquivo pessoal

"Depois de se afastar da Funai, o Bruno passou a prestar serviço voluntário. Esse hábito que ele tinha de conviver nas aldeias criou uma relação muito íntima com a população local. O momento é de tristeza e de choque. Eles [Bruno e Dom Phillips] são nossos amigos, parceiros da população indígena do Vale do Javari".

Segundo ele, a maior preocupação de Bruno era mesmo nas imediações de Atalaia do Norte, para onde iria com Dom Phillips, onde a tensão com os invasores era maior. "Ele disse: 'prefiro expor a minha vida a colocar a vida dos indígenas em risco'".

'Conhecia a região como a palma da mão'

O indigenista relacionou a sua saída do cargo de coordenador geral de Índios Isolados e de Recente Contato ao combate contra o garimpo.

"Fizemos [no mês anterior] a maior destruição de garimpo do ano em região de índios isolados. A última operação de combate à mineração foi na reserva Yanomami. Cheguei à tarde e recebi minha exoneração", disse, em entrevista ao site Brasil de Fato.

Ao longo de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) deu diversas declarações em apoio à flexibilização das regras sobre o garimpo. "Por mim eu abro o garimpo. Tem um projeto para abrir o garimpo em terra indígena. Um projeto que os índios querem", afirmou o presidente em conversa com apoiadores em abril de 2020.

No fim de 2019, Bruno participou de reunião em Brasília com o defensor público Renan Sotto Mayor, em que citou o assassinato de Maxciel Pereira dos Santos, colaborador da Funai morto a tiros em setembro daquele ano, e os outros oito ataques a tiro contra agentes da Funai. A morte de Maxciel até hoje não foi esclarecida.

"Quando ele [Bruno] saiu após relatar tudo, olhei para o meu assessor e ele estava em estado de choque. Aí, ele disse: 'Eu estava ouvindo o Bruno falar e fiquei imaginando que ele pode ser assassinado a qualquer momento por lutar pelo que acredita'", lembrou o defensor, em entrevista ao UOL.

Sotto Mayor criticou a precariedade das políticas públicas de proteção voltadas às comunidades indígenas da região nos últimos anos e também relacionou a saída de Bruno da Funai ao combate ao garimpo.

"O Bruno conhecia o Vale do Javari como a palma da mão e fazia o enfrentamento ao garimpo em áreas indígenas. Com a saída dele [da Funai], essas políticas infelizmente foram diminuindo", analisa.

'Calaram essas vozes'

Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o pesquisador Aiala Couto se refere a Bruno como "um militante do movimento indigenista".

"[Como servidor] Ele era um cara que vestia a camisa e defendia as reservas indígenas. Logo, era um funcionário que não contribuía para a política do governo federal. O Bruno sofreu perseguição política dentro da Funai justamente por fiscalizar, detectando a invasão de madeireiros e garimpeiros".

Após a exoneração e o trabalho em conjunto com a Univaja, Aiala diz acreditar no acirramento nas relações e na fragilização do papel de Bruno.

"Ele era visto como um inimigo em potencial por quem tinha interesse em explorar a área. O governo deveria dar garantias para que a Funai pudesse trabalhar com segurança, mas virou as costas para o Bruno, que voltou para a região em uma condição de vulnerabilidade, como convidado da associação", lembra.

Para o pesquisador, o trabalho jornalístico de Dom Phillips é fundamental para mostrar ao mundo o que ocorria na Amazônia. "Calaram essas vozes".

Ameaças de invasores

Antes de serem mortos, Bruno e Dom se depararam com ameaças de morte e até com invasores armados na divisa de um território indígena, segundo relatos de entrevistados pelo UOL que atuam no Vale do Javari.

Paulo Barbosa da Silva, coordenador-geral da Univaja, disse que o repórter inglês fotografou homens armados que ameaçavam os indígenas. Os homens, segundo Barbosa, seriam ligados a Amarildo da Costa de Oliveira, 41, suspeito de ser o autor do crime.

O episódio ocorreu dois dias antes do desaparecimento, na divisa de um território indígena, de acordo com Barbosa. "O Bruno e o Dom Phillips foram visitar a equipe da Univaja quando um grupo de invasores esteve lá. Eles ficaram mostrando arma de fogo, para ameaçar. O jornalista tirou a foto, e os invasores voltaram para a comunidade deles, que fica na área [do suspeito preso]", relata.