Ritual, vidente e obras de arte: o que se sabe sobre golpe de R$ 720 mi
A operação Sol Poente, que prendeu na manhã de ontem a socialite Sabine Coll Boghici, suspeita de ter armado um golpe contra a própria mãe, chamou atenção por envolver nomes famosos da sociedade carioca e até mesmo uma obra de arte de Tarsila do Amaral avaliada em R$ 250 milhões.
A mulher é filha de Geneviève Boghici, uma idosa de 82 anos, que segundo a polícia teve R$ 725 milhões subtraídos em dinheiro, joias e obras de arte. Veja o que se sabe até agora sobre o crime.
Como crime aconteceu?
Segundo as investigações da Polícia Civil, o golpe tramado pela mulher teria sido iniciado em janeiro de 2020, quando a mãe dela, viúva de um grande colecionador de arte, foi abordada por uma suposta vidente enquanto saía de uma agência bancária em Copacabana, recebendo a previsão de que sua filha estava doente e morreria em breve.
Adepta de rituais místicos e ciente de que a herdeira enfrenta problemas psicológicos desde a adolescência, a vítima decidiu realizar o pagamento para um suposto tratamento espiritual, que salvaria a mulher.
Em apenas duas semanas, entre 22 de janeiro e 5 de fevereiro de 2020, ela fez transferências que ultrapassaram os R$ 5 milhões, segundo nota enviada pela Polícia Civil ao UOL.
A idosa começou a desconfiar que tinha sofrido um golpe alguns dias depois da última transação, quando a filha começou a isolar a mãe de amigos e conhecidos. Ela suspendeu os pagamentos, mas começou a ser ameaçada por comparsas da herdeira e voltou a repassar dinheiro para eles.
Como caso chegou à polícia?
O caso chegou até a Polícia Civil do Rio de Janeiro quando a idosa resolveu procurar a delegacia no começo do ano, mais de seis meses depois de proibir a filha de entrar na casa dela.
Na ocasião, a mãe de Sabine disse às autoridades que, entre os anos de 2020 e 2021, após realizar a transferência de R$ 5 milhões para o grupo de estelionatários para livrar a filha de "um mal incurável", foi mantida em cárcere privado dentro da própria casa. Nesse período, segundo depoimento, a filha chegou a apontar uma faca para o pescoço da idosa.
Segundo as investigações, depois de efetuar o pagamento dos valores, Sabine Coll Boghici voltou a morar com a mãe, dispensou os funcionários do apartamento, afastou a idosa dos amigos e passou a controlar o telefone da mãe.
A mulher passou a ficar isolada sob a justificativa de quarentena devido ao período de pandemia. Com o tempo, a vítima começou a sofrer ameaças e agressões da própria filha para efetuar novas transferências.
Segundo o delegado Gilberto Ribeiro, a idosa informou à polícia que teve uma faca apontada para o seu pescoço pela própria filha e chegou a ser deixada sem comida. Ainda no período do cárcere, foram levados R$ 6 milhões em joias.
Ela conseguiu fugir do apartamento com uma chave reserva que mantinha escondida.
"Num determinado dia, a filha saiu da casa e deixou a idosa sozinha acreditando que ela não tinha como sair, mas a idosa tinha uma chave reserva que nunca havia informado que tinha, e foi para a casa de uma amiga", disse o delegado. "Ali, ela se recuperou um pouco psicologicamente e resolveu voltar para casa com pessoas de uma clínica psiquiátrica para fazer a internação a filha", afirmou.
A filha pediu para a mãe não executar a internação e foi embora do imóvel. A vítima trocou as chaves da fechadura e informou aos profissionais do prédio que Sabine não estava mais autorizada a entrar no local.
"Ela levou quase um ano para ter coragem de fazer a denúncia na delegacia", disse o delegado.
Por que obras foram levadas?
Segundo as investigações da polícia, as obras de arte da idosa começaram a ser levadas da casa em que ela morava quando ela parou de fazer transações financeiras para os estelionatários. Na ocasião, eles teriam levado os quadros embora afirmando que eles tinham "mau olhado".
Das 16 obras de artes roubadas, onze foram recuperadas na operação da Polícia Civil.
Três estavam em uma galeria de arte de São Paulo, para onde foram vendidas, e duas foram encaminhadas para o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, na Argentina. Elas estão no acervo particular de Eduardo Costantini.
A mais valiosa das obras encontradas pela polícia na manhã de hoje foi o quadro "Sol Poente", de Tarsila do Amaral, que deu nome à operação e está avaliado em R$ 250 milhões.
A obra, junto a outras cinco, estava sob uma cama na casa de Rosa Nicolau Stanesco, uma das suspeitas do crime.
Quadros de Di Cavalcanti também estavam entre os recuperados pela polícia.
Quem é Sabine, a filha que aplicou o golpe na mãe?
Sabine Coll Boghici, 48, se apresenta como atriz, cantora e colecionadora de brinquedos antigos em colunas sociais do Rio de Janeiro.
A carioca, que tem mais de 3 mil itens em seu acervo de peças antigas, usa apenas o sobrenome da mãe em seu nome artístico e sempre fez questão de conectar seus projetos à causa animal. Nas redes sociais, ela costuma publicar fotos com os bichos.
Em 2011, ela se reuniu com artistas como Lui Medeiros para um show na Lapa, intitulado "Solidariedade Animal", com o objetivo de arrecadar fundos para o Abrigo João Rosa, que cuida de cães abandonados.
Anos depois, em 2019, Sabine foi ao programa "Sem Censura", da TV Brasil, para falar sobre seu trabalho como fundadora do chamado Centro de Reabilitação Animal (CRASB), uma ONG de resgate de bichos em situação vulnerável.
O que mãe e filha disputam na Justiça?
A causa animal ostentada por Sabine esteve no centro de uma disputa judicial entre a mulher e a mãe.
Em junho deste ano, a filha da francesa sofreu mais uma derrota na Justiça carioca em um processo pedindo a guarda dos animais de estimação da família Boghici, que estão em um sítio na região serrana do Rio de Janeiro.
No processo, Sabine também detalha sua insatisfação com as negativas da idosa em ceder um imóvel mais ao centro da capital carioca para que a filha pudesse se mudar, sob o pretexto de facilitar o trabalho de resgate.
Quem são os outros suspeitos?
A operação da Polícia Civil foi arquitetada com intuito de prender cinco pessoas envolvidas no crime além de Sabine. Todas são da mesma família. Até a noite de hoje, três delas tinham sido presas e duas estavam foragidas.
Os demais suspeitos são:
- Rosa Stanesco: seria namorada de Sabine e se passou por vidente para oferecer serviços espirituais para a idosa;
- Gabriel Nicolau Traslaviña Hafliger: filho de Rosa;
- Jaqueline Stanescos: prima de Rosa e de Diana, que também se passou por vidente;
- Slavko Vuletic: está foragido e é padrasto de Rosa. Ele teria recebido dinheiro roubado da idosa e;
- Diana Rosa Aparecida Stanesco Vuletic: meia-irmã de Rosa, que teria sido a primeira vidente a abordar a mulher de 82 anos.
Diana já havia sido presa no mês de abril, no bairro de Ipanema, na zona sul do Rio, por estelionato. Ela também abordou uma mulher na rua e a convenceu a realizar uma consulta espiritual. Em um apartamento, ela pediu que a vítima comprasse ovos brancos, panos e velas sob para desfazer um "trabalho" feito contra a mulher.
Pelo procedimento, a falsa vidente cobrou R$ 4,3 mil. A mulher, na época desempregada, não tinha recursos para fazer o pagamento. Um dia após a suposta consulta, ela ameaçou a vítima dizendo que ela seria hospitalizada em seis meses, caso não cumprisse o recomendado.
Na ocasião, o Tribunal de Justiça concedeu liberdade provisória a Diana. Ela foi solta em audiência de custódia e teve a prisão convertida em medidas cautelares, como comparecimento mensal em cartório, proibição de se ausentar da comarca de sua residência, proibição de contato com a vítima e devendo manter distância dela por 200 metros. Contra Diana há também um processo por falsidade ideológica.
Quem é a família Boghici?
O patriarca da família, um artista plástico romeno de nome Jean Boghici, foi um dos mais importantes "marchands" e colecionadores de arte do Brasil. Ele morreu em 2015, aos 87 anos, deixando um patrimônio artístico avaliado em mais de R$ 700 milhões para a companheira.
Jean colecionava obras desde os anos 1960, foi dono da galeria Relevo, na capital carioca, e reuniu um dos acervos mais importantes de arte brasileira.
Ele se mudou para o Brasil em 1948 para escapar das consequências da Segunda Guerra Mundial na Romênia, chegando em um navio francês ao Rio de Janeiro, onde passou os primeiros meses trabalhando no conserto de rádios e dormindo na areia da praia.
"Sempre gostei de eletrônica e construí um rádio de ondas curtas. Um dia, sintonizei [Winston] Churchill dizendo que uma cortina de ferro soviética cairia sobre o meu país. Achei melhor fugir dali", declarou o colecionador, que chegou a cursar engenharia em seu país natal, ao jornal carioca O Globo, em 2012.
Seu talento como cartunista e desenhista facilitou sua conexão com grupos de artistas cariocas, incluindo a escultora Lygia Clark, com quem namorou por seis anos. Durante o relacionamento, ele chegou a ajudar a mineira na confecção da obra "Bichos", uma de suas mais conhecidas.
A carreira de Boghici teve uma guinada quando ele ganhou uma competição de perguntas e respostas sobre a vida do pintor Vincent Van Gogh, na TV Tupi. Ele foi "descoberto" por um produtor da emissora em um bar da capital carioca e conta que estava "mal cuidado" após sofrer um acidente de moto, atribuindo a aparência exótica, semelhante a Kirk Douglas interpretando o holandês no cinema, pelo convite para o quiz.
Com o valor do prêmio, US$ 200 mil, ele comprou um apartamento em Copacabana, onde viveu pelo resto da vida, e tirou um período sabático para viajar. Na volta, ele abriu sua própria galeria, a Relevo, ao lado de dois sócios.
Além de introduzir as obras de novatos brasileiros e estrangeiros em seu espaço, o colecionador mantinha uma relação próxima com artistas já consagrados, como Di Cavalcanti, que era vizinho de prédio do romeno.
Em 2012, seu apartamento no famoso bairro carioca foi palco de um incêndio que destruiu alguns dos quadros de seu acervo, incluindo o clássico "Samba", de Di. Mas, em uma entrevista à revista Veja na ocasião do incidente, ele destacou que a maior perda foram dois de seus 16 gatos, mortos em meio ao fogo, que começou após um curto-circuito no ar-condicionado do quarto de Sabine.
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