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'Armas não edificam a sociedade', diz professora que sobreviveu em Aracruz

A professora Priscila Queiroz, 40, teve a clavícula fraturada com um dos tiros que recebeu pelas costas - Reprodução/Arquivo Pessoal
A professora Priscila Queiroz, 40, teve a clavícula fraturada com um dos tiros que recebeu pelas costas Imagem: Reprodução/Arquivo Pessoal

Maurício Businari

Colaboração para o UOL

29/11/2022 04h00

Aos 40 anos, a professora de língua portuguesa Priscila Queiroz sente-se como se tivesse nascido novamente. Ela foi uma das educadoras baleadas durante o ataque do adolescente de 16 anos que entrou atirando em duas escolas em Aracruz (ES), matando quatro pessoas e ferindo outras 12. Indígena da etnia tupiniquim, ela acredita que foi salva por "proteção divina".

"Sou educadora há 17 anos, mas hoje carrego mais uma bandeira: a da segurança", afirmou a docente ao UOL. Priscila foi atingida por dois disparos, um nas costas, que atravessou o ombro e quebrou sua clavícula, e outro que a pegou de raspão no braço. Ela diz que o ataque foi muito rápido, questão de segundos. Mas que, mesmo assim, não consegue apagar da lembrança a visão do atirador, vestido com um uniforme do exército.

Priscila leciona há dois anos na escola estadual Primo Bitti, no bairro do Coqueiral, primeira unidade de ensino atacada pelo adolescente e onde ele estudou até junho deste ano, quando iniciou um processo de transferência.

"Estávamos na hora do recreio. Os alunos no pátio e, nós, na sala dos professores. Nós conversávamos, estávamos nos preparando para voltar para as classes quando eu ouvi os primeiros estampidos", contou. "De repente, essa pessoa vestida com roupa do exército invadiu a sala e atirou.

A professora disse que não conseguiu entender o que acontecia na hora. "Não venho de uma cultura de violência. Eu ouvi os disparos, mas não entendi. Só depois que olhei para trás e vi duas colegas caindo ao chão e, depois, outra amiga caindo ao meu lado. Foi aí que comecei a me dar conta. Mas, nessa hora, eu mesma já tinha levado dois tiros", declarou. "Daí, olhei para trás novamente e vi aquela pessoa, com a arma na mão. E também caí ao chão".

A professora conta que ficou desesperada e que sentiu um impacto muito forte na coluna. "Achei que tinha ficado paraplégica, nem conseguia sentir direito as pernas, tamanho o susto, o choque, o pavor daquela cena. Só quando ele [o atirador] deixou a sala dos professores, eu consegui focar nas pernas e vi que elas estavam respondendo. Isso foi um alívio. Mas eu estava rodeada por uma poça com meu próprio sangue".

A professora diz que o tempo todo permaneceu firme e lúcida, tentando manter a calma o máximo que podia. "Eu apenas orava e clamava a Deus para que aquele homem fosse embora logo e que todos pudessem ter sobrevivido. Mas, depois, soube que havia perdido três das minhas amigas queridas. Professoras maravilhosas, cujas famílias agora devem estar sofrendo muito", comentou.

Priscila diz que ficou surpresa ao saber que o atirador havia sido aluno da escola. Ela não foi professora dele, mas ouviu de colegas que o adolescente sempre foi muito calado, "na dele", mas que nunca demonstrou qualquer inclinação para a violência. "Minhas colegas estão sem entender como ele pôde fazer o que fez".

"A ficha não caiu"

Priscila, nascida e criada em uma aldeia da etnia tupiniquim em Aracruz, afirma que se sente ainda "em choque", como se "a ficha não tivesse caído". "Na minha aldeia, quando um ancião morre, por exemplo, tudo para. Todos param para reverenciar o momento de passagem. Lá, cada um sente a dor do outro", afirma.

Agora, a professora diz que pretende se recuperar do trauma e curar os ferimentos no corpo, "pedindo a Deus que cure as feridas da alma".

"Escolhi essa profissão por amor, porque acredito ser possível mudar uma sociedade com bons livros, conhecimento, empatia, amor. Desenvolvendo virtudes. As escolas brasileiras carecem de infraestrutura e segurança. Essa será também a minha luta".

A professora reforça que é contra a posse e o porte de armas. "Há tanta coisa maravilhosa para colocar nas mãos dos nossos filhos, como livros, conhecimento, empatia, amor pela família. Quer colocar um machado na mão do seu filho? Coloque então um Machado de Assis. Temos que esquecer o ódio e cultivar o amor. As armas não edificam uma sociedade".

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Relembre o caso

Duas escolas foram alvo de um atentado a tiros, na manhã de sexta (25), em Aracruz, no litoral norte capixaba, cidade localizada a 81 km de Vitória. A ação teve quatro mortos e 12 feridos (sete seguem internadas, a maioria em estado grave), segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública do Espírito Santo.

O adolescente de 16 anos foi apreendido, suspeito do crime. Segundo a Polícia Civil, ele se entregou no momento da detenção. Foi apreendido em casa. O jovem estaria portando duas armas de fogo, um revólver calibre 38 e uma pistola .40, que pertencia ao pai.

De acordo com o capitão da PM Sérgio Alexandre, o atirador estava munido ainda de carregadores quando invadiu a primeira unidade de ensino. Ele teria ido diretamente à sala dos professores, onde ameaçou profissionais no local e deu início aos disparos. Em seguida, foi até a segunda escola, localizada na mesma avenida.