'Mata na faca': MPF investiga canais de YouTube que narram violência de PMs
O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro investiga um grupo de canais de YouTube por exaltação à violência policial. A apuração mira programas de entrevista em que agentes de segurança pública relatam ocorrências em que se envolveram.
O que aconteceu
O MPF-RJ abriu uma apuração interna sobre os canais no dia 17 de abril. A investigação inicial do MPF cita quatro canais no YouTube.
Nos vídeos investigados, PMs do Rio e de São Paulo narram abusos que eles próprios teriam cometido. Eles falam abertamente que a polícia encobre e estimula ações violentas, inclusive mortes.
O MPF e a DPU (Defensoria Pública da União) pediram informações ao Google (que controla o YouTube) sobre a moderação destes conteúdos. Isso ocorreu após os vídeos terem sido revelados em uma reportagem do site Ponte Jornalismo, de 15 de abril.
O foco principal dos órgãos federais está nos canais. Eventuais crimes confessados pelos PMs devem ser apurados em âmbito estadual, se for o caso.
O YouTube excluiu ontem dois vídeos do canal de Danilo Snider, após o UOL questionar o Google. Na página, a mensagem é de que os vídeos foram excluídos por "violar as diretrizes da comunidade" do site.
As páginas, que veiculam entrevistas com policiais em formato de podcast, têm de 200 mil a 1,6 milhão de inscritos. As mais antigas estão no ar há mais de 10 anos.
O MPF afirma que quer alinhar com o Google limites para a veiculação destes vídeos.
Estamos vendo se é possível ajustar comportamentos, limitar esse tipo de discurso ofensivo, sem precisar buscar medidas drásticas, como a exclusão dos canais. Mas isso é a apuração que vai dizer."
Procurador Julio Araújo, do MPF-RJ
Para mim é muito claro: o policial não pode falar abertamente em transgressões e até crimes que cometeu. Ali [no conjunto do material] tem confissões abertas."
Defensor público Thales Arcoverde Treiger, da DPU-RJ
"O Bope entra e mata os outros na faca mesmo"
Em um dos vídeos sob apuração, um PM licenciado no Rio afirmou que agentes do Bope cometem atos de violência sem registro oficial. A afirmação é de Miquéias Arcenio, que já foi assessor do vereador cassado e ex-PM Gabriel Monteiro.
Arcenio afirmou que o Bope, quando quer, "mata os outros na faca mesmo", mas que "oficialmente isso não existe". Um exemplo dessa prática, segundo ele, ocorreu em uma operação na favela Nova Brasília, Complexo do Alemão, que deixou 7 mortos.
A entrevista foi publicada em 4 de setembro do ano passado. O canal tem 1,54 milhão de inscritos e está no ar há mais de anos, mas começou a publicar entrevistas com policiais em maio de 2021.
Dono do canal, Danilo Snider não quis comentar sobre teor dos vídeos. "Eu não tenho o que falar. Só fazemos o podcast ao vivo e postamos os cortes", disse ao UOL.
O UOL procurou Miquéias Arcenio por e-mail e mensagem no Instagram, mas não teve retorno.
O Bope, quando entra, ele faz o diabo mesmo. Ele entra, mata os outros na faca mesmo. Óbvio que oficialmente isso não existe, isso nunca aconteceu [...].
Quando eles [Bope] querem fazer uma covardia, eles tiram o uniforme deles e botam o nosso [de PM]. O convencional. É sério. Porque quando eles [Bope] entram com o uniforme deles, os caras correm. Então, quando eles querem fazer uma covardia eles trocam de uniforme e entram com o convencional".
PM licenciado Miquéias Arcenio, em entrevista a Danilo Snider
"O senhor tem 15 dias para matar um ladrão"
Um capitão da PM em São Paulo afirmou ter recebido de seu superior um prazo de "15 dias para matar um ladrão". O relato é de André Silva Rosa, um policial que já comandou unidades da Rota.
Silva Rosa disse ter recebido essa ordem ao entrar para a Força Tática do 27º Batalhão, na capital paulista. O agora capitão diz ter ouvido do superior dele à época, um sargento, que deixaria o posto se falhasse na missão.
O mesmo PM já é investigado por ter afirmado, em outra entrevista, que ameaçou uma mulher grávida que lhe devia dinheiro. O UOL procurou Silva Rosa por e-mail e WhatsApp, mas não houve resposta.
Aí eu falei: 'Eu vim para matar!'. Falei grosso também. Mas, mano, eu estou vindo da ronda escolar, cara, não sei fazer porra nenhuma [...].
Aí ele [o sargento] falou: o senhor tem 15 dias para matar um ladrão. Senão o senhor cumpre escala [deixa a Força Tática]. Aí eu olhei e falei, como assim, meu? E ele: aqui é assim. Boa sorte aí, e se precisar de qualquer coisa me chama".
Capitão Silva Rosa, da PM-SP, em entrevista a Danilo Snider
"A grávida voltou, enrolei ela pelo cabelo e... tomou"
Um sargento da PM do Rio, Henrique Britto, contou ter espancado um menino de 12 anos e uma mulher grávida. A ocorrência, segundo ele, foi durante a instalação da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) no conjunto de favelas Cantagalo-Pavão-Pavãozinho.
Britto disse ter "perdido o controle" durante uma abordagem a um bar. O policial afirma que bateu primeiro no menino, que o teria provocado, e em seguida em várias outras pessoas que reagiram à primeira agressão. Britto disse que foi condenado a pagar cestas básicas pelo episódio.
A declaração foi dada ao canal CopCast, que funciona há um ano e tem 230 mil seguidores. O dono da página, Renato Nascimento, também foi funcionário do vereador cassado Gabriel Monteiro e abriu o canal quando deixou o cargo.
Nascimento afirma que as situações narradas nas entrevistas podem ser verificadas em boletins de ocorrência. Sobre o caso do Rio, ele diz que o sargento "reconheceu que se excedeu", mas que via de regra os policiais agem "revidando injusta agressão" de criminosos.
O sargento Britto não enviou manifestação até a publicação deste texto. A empresa Evil Black Ops, da qual Britto é sócio, afirmou que consultará seus advogados para se inteirar da apuração do MPF.
Já peguei, dei uma porrada no moleque, pum, o moleque tombou, já cambalhotou e bateu naquelas caixas de cerveja que ficam empilhadas. Bateu e caiu lá.
Aí eu sei que veio uma mulher, veio uma grávida, veio mais gente, e peguei a mulher, e joguei a grávida para lá. A grávida voltou, enrolei ela pelo cabelo e [faz barulho forte de tapa] tomou. Voou longe."
Sargento Henrique Britto, da PM no Rio
Youtube removeu dois vídeos ontem
A exclusão ocorreu após o UOL questionar a plataforma. A reportagem pediu manifestação do Google sobre o conteúdo dos vídeos, mas não teve resposta até a publicação deste texto.
O UOL também questiona a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e a Polícia Militar do Rio desde a última terça (9). Os órgãos afirmaram que o material estava "em apuração", mas também não responderam.
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