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'Dormimos no deserto': afegã conta saga para chegar ao Brasil após ameaças

Nooria Sharif, 28, perdeu o emprego após a tomada do Talibã no Afeganistão e tenta recomeçar a vida no Brasil - Ilustração: Yasmin Ayumi/UOL
Nooria Sharif, 28, perdeu o emprego após a tomada do Talibã no Afeganistão e tenta recomeçar a vida no Brasil Imagem: Ilustração: Yasmin Ayumi/UOL

Do UOL, em São Paulo

17/07/2023 04h00Atualizada em 19/07/2023 15h48

Nooria Sharif, 28, deixou o Afeganistão há quase dois anos. Ela, o marido e os três filhos de 6, 8 e 11 anos cruzaram por uma semana a fronteira em direção ao Irã na busca de melhores condições de vida. Ao chegar no país vizinho, Nooria não conseguiu vislumbrar um futuro, especialmente por ser mulher, e decidiu voar até o Brasil, com visto humanitário.

A vida de Nooria era comum antes de o grupo fundamentalista Talibã reassumir o poder no Afeganistão. Ela trabalhava em uma televisão nacional, atuou na defesa dos direitos de meninas e mulheres em uma ONG e, por último, foi funcionária do governo.

"Quando o Talibã invadiu o país, o sofrimento começou. Estava em uma situação muito difícil. Não tinha dinheiro, não tinha casa, não tinha nada", disse ela em persa. A conversa foi traduzida para o inglês por Shabir Ahmad Niazi, 22, um afegão que está no Brasil há 7 meses e que é diretor da organização ARRO (Afeghanistan Refugee Rescue Organization) — uma das instituições que acolhe os refugiados no país.

Em agosto de 2021, vários afegãos fugiram de suas casas após o Talibã reassumir o poder, quando tropas estrangeiras deixaram o país sem um projeto de transição política. Em apenas uma semana, o grupo fundamentalista já tinha tomado 26 das 34 capitais provinciais.

"Quando eles chegaram, eu não poderia continuar. Eles enviaram ameaças porque trabalhei no governo", conta. Uma das primeiras medidas do Talibã no poder foi restringir o acesso das mulheres ao trabalho e às universidades.

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Sem acesso a direitos básicos, Nooria precisava deixar o país. Ela havia conseguido um visto humanitário para embarcar para a Europa. No entanto, o restante da família não estava contemplado. "Não poderia deixar meu marido e meus três filhos."

A família então decidiu percorrer um caminho por terra, em direção ao país vizinho, o Irã. "Se você perguntar como foi ir para lá, eu vou chorar. Porque foi uma vida difícil", disse ela, antes de ir às lágrimas.

Nooria contou que esteve sete dias entre as montanhas que dividem os dois países, percorrendo o caminho ora a pé, ora de carro. Além de árida, a região também é zona de disputa entre os dois países. "É muito duro quando você vê suas crianças nessa situação. Às vezes não tem água, temos que dormir no deserto, é uma situação ruim. Não só para mim, mas muitas pessoas que tiveram que fazer isso."

A vida em refúgio

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Quando a fronteira foi cruzada, Nooria estava sem visto. Ela não poderia cruzar a fronteira documentadamente porque havia controle do Talibã. Com a ajuda de amigos e familiares, ela conseguiu as autorizações legais para permanecer no país, onde ficou por um ano e meio.

"Era muito difícil para as mulheres afegãs viver no Irã. Meus filhos não estudavam. Tinha alguns amigos que me ajudavam, enviavam dinheiro. E não era possível ficar tranquila porque o governo do Irã deu a embaixada do Afeganistão para os talibãs", conta ela.

Assim como no Afeganistão, o Irã está sob um regime fundamentalista que viola os direitos das mulheres. O governo, por exemplo, restringe a educação e o transporte público para aquelas que desobedecem regras de vestimenta do país. No ano passado, a jovem curdo-iraniana Mahsa Amini, 22, morreu após ser detida pela polícia da moralidade por supostamente se cobrir de forma "inadequada". As autoridades afirmaram que a morte foi decorrente de uma doença, mas versão foi contestada pela família.

Mirando o futuro no Brasil

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Tempos depois do Talibã tomar o poder no Afeganistão, o Brasil facilitou o pedido de refúgio para os afegãos que fugiam do grupo fundamentalista com uma portaria interministerial. Na ocasião, foram autorizados mais de 11 mil vistos humanitários para a população.

Ao saber que o Brasil estava favorecendo o visto, Nooria não pensou duas vezes. "A situação dos imigrantes no Irã e no Paquistão não é muito melhor. Não há educação para os filhos, não há futuro. E quando ouvi falar sobre o Brasil, vi futuro para minha família". Novamente com ajuda de amigos e familiares, ela conseguiu comprar as passagens de avião e embarcar para o país sul-americano, com o intuito de reconstruir a vida.

aeroporto - Heloísa Barrense/Do UOL - Heloísa Barrense/Do UOL
Refugiados afegãos acampam em aeroporto após desembarcarem no Brasil
Imagem: Heloísa Barrense/Do UOL

Mas, ao chegar no aeroporto: "Surpresa", diz ela. Nooria e a família perceberam que teriam que ficar alguns dias acampados por lá, com mais de 100 refugiados, já que os abrigos estavam lotados.

"O governo dá um visto humanitário, mas se eles não acolhem, o que vai acontecer com eles? Terão que, de novo, ir ilegalmente para outros países?", criticou Shabir ao traduzir a resposta de Nooria.

Assim como a conterrânea, Shabir passou alguns dias atravessando a fronteira entre Afeganistão e Irã para conseguir fugir das forças do Talibã. Antes de o grupo fundamentalista reassumir o poder, ele cursava psicologia. Ao fugir, teve que se separar do irmão, que permaneceu 22 dias tentando chegar ao Irã. E, chegando no aeroporto, também teve que enfrentar um mês de acampamento improvisado.

"Duas semanas morando aqui é muito estresse, não tem silêncio, dá problemas na mente. Eu vivi um mês aqui e, depois, criei a associação para apoiar os afegãos. Quando eu vim e vi a cidade, vi muitas pessoas sem casa. No centro, muitas situações ruins, pessoas roubando. Senti que deveria criar alguma coisa porque já chegamos em uma situação ruim."

O UOL esteve no local no dia 28 de junho, o mesmo dia em que se foi comemorado o Eid Al-Adha, conhecido como "A Grande Festa", uma celebração islâmica que ocorre um pouco mais de dois meses após o Ramadã. Na data, os muçulmanos fazem orações e dividem um banquete entre amigos e familiares, além de doar comida para os mais necessitados. Neste ano, no entanto, não houve festa.

Na ocasião, o acampamento improvisado no aeroporto estava passando por um surto de escabiose, mais conhecida como sarna humana. Segundo o Coletivo Frente Afegã, que acompanhava a situação desde a chegada dos refugiados, havia ao menos 20 pessoas com a doença.

Nooria já estava há 17 dias no acampamento quando conversou com a reportagem. "Foi uma surpresa saber que teria que ficar aqui", disse ela. Além de aguardar acolhimento, Nooria também se encarregava da família e dos colegas afegãos. "Eu acordo, tomo café da manhã, organizo as coisas e tento motivar as pessoas. O meu trabalho diário é ajudá-los."

Shabir conta que Nooria tem uma qualidade especial de conseguir contornar e controlar situações de conflito, muitas vezes derivadas das restrições de higiene, alimentação e sono. Sem acesso a itens básicos, as pessoas são levadas rapidamente ao estresse.

"Todo mundo está doente. Estamos estressados. As crianças dizem: 'mãe, o que está acontecendo? Vamos voltar para o Afeganistão! Por que estamos aqui?'", diz Nooria.

Mantendo os sonhos vivos

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No aguardo do acolhimento, Nooria já fazia planos para a nova vida no Brasil. A primeira missão dela assim que deixasse o aeroporto seria aprender português -- e retomar a educação formal dos filhos. "Quero que eles voltem para a escola."

Depois, Nooria aspira seguir com o trabalho que fazia no Afeganistão antes do Talibã. "Quero continuar lutando pelos direitos das meninas e mulheres, como fazia antes. Quero encontrar uma solução para as mulheres que estão lá. Porque as escolas e as universidades estão fechadas para nós. Quero encontrar uma maneira de trazê-las para estudar", diz ela.

A reportagem entrou em contato com Shabir no dia 4 de julho para saber atualizações de Nooria e foi informada que ela e a família conseguiram acolhida em Praia Grande. Ela se mudou no dia 1 de julho, três dias após a visita do UOL no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Além dela, os demais refugiados que estavam no acampamento improvisado também foram encaminhados para a cidade da baixada santista. A situação de todos ainda é acompanhada por Shabir e pela a ARRO.

Crise no Afeganistão

Segundo relatório da missão das Nações Unidas no Afeganistão publicado no final de junho, mais de mil civis afegãos foram mortos desde a partida das forças estrangeiras e a retomada do poder pelo Talibã.

Além disso, as Nações Unidas expressaram "profunda preocupação" com o fato de as mulheres estarem sendo privadas de seus direitos e alertaram a existência de um apartheid de gênero no país.

Desde agosto de 2021, meninas e mulheres estão impedidas de frequentar o ensino médio ou a universidade, parques, academias e banheiros públicos. Além disso, elas são obrigadas a se cobrirem ao saírem de casa e não podem mais trabalhar para a ONU ou ONGs. Aquelas que tinham cargos públicos foram demitidas.

O Talibã é um grupo fundamentalista formado nos anos 1990, quando mujahideens afegãos e guerrilheiros islâmicos se uniram para combater a ocupação soviética no Afeganistão. A própria CIA (Agência de Inteligência Central) dos Estados Unidos é apontada como uma das apoiadoras da formação do grupo na época.

O grupo controlou o país até 2001, em meio a "guerra ao terror" do então presidente americano, George W. Bush. Suspeitando que o Talibã estivesse abrigando Osama Bin Laden, líder do grupo extremista Al-Qaeda, forças americanas e britânicas bombardearam o país em outubro do mesmo ano. Logo em seguida, em uma incursão terrestre, forçaram a retirada dos talibãs das grandes cidades.

Após a intervenção, a ONU convidou as principais facções afegãs para formarem um governo provisório. Enquanto isso, o grupo se refugiou nas fronteiras do país com o Paquistão e passou os últimos 20 anos buscando formas de retomar o poder.

Ilustração: Yasmin Ayumi/UOL