Estupro, tapa no peito e cabelo cortado: presos LGBTI+ relatam torturas

Em uma unidade prisional da Bahia, uma presa transgênero foi estuprada. Em outra ocasião, ela foi agredida com tapas no peito por agentes penitenciários no mesmo local. A peritos do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), ela revelou que não denunciou a violência por medo de sofrer represálias.

Casos como esses de tortura de pessoas LGBTIs foram relatados em 11 de 12 estados inspecionados pelo órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e descritos no Relatório Nacional de Inspeções da população LGBTI+ Privada de Liberdade no País, divulgado em setembro.

Os estados citados na reportagem afirmam repudiar a violência em unidades prisionais e trabalhar para garantir os direitos assegurados por lei (veja mais abaixo o outro lado).

Relatos de abusos e humilhações

Em todas as unidades visitadas, os peritos do MNPCT verificaram relatos de xingamentos, ameaças e violência sexual, física e psicológica. O órgão constatou ainda que o corpo de pessoas LGBTI+ é usado para o transporte de objetos ilícitos nas unidades.

Em 11 estados foi observada a prática de violência contra essa população prisional tanto nas unidades masculinas quanto femininas. Somente em Pernambuco e na unidade feminina de Santa Catarina não foram observadas formas de tortura.

"Denunciar para quê? Apanhar de novo e pegar castigo?" Uma das mulheres trans presas em uma unidade de Goiás afirmou que "não há condições para fazer denúncias". Segundo ela, há risco de represálias por parte dos agentes penitenciários.

"Os policiais fazem câmara de gás". Na unidade masculina do Pará, a inspeção revelou que agentes lançam spray de pimenta e fecham as celas na sequência.

Quando mulheres trans tentavam demonstrar afeto, os agentes penitenciários disparavam contra elas com balas de borracha a distância.
Bárbara Suelen Coloniese, coordenadora do Relatório Nacional de Inspeções da população LGBTI+ Privada de Liberdade no País

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Outro relato aponta que seis presas foram espancadas por agentes por utilizarem vasilhas de marmitas como saboneteiras também no Pará. Na unidade feminina, pessoas LGBTI+ disseram que houve suspensão de alimentação, superlotação de celas por 10 dias, banhos de sol abusivos e uso de balas de borrachas nas mãos para evitar que as presas se comunicassem por libras.

Uma presa trans que cumpre pena em uma unidade mista do Rio Grande do Sul relatou que foi estuprada por um agente de segurança. Ela informou aos peritos que os policiais penais cortaram seu cabelo dizendo que "ela não era mulher e que tinha um órgão genital masculino entre as pernas".

"O primeiro direito é não ter direito, e o segundo é respeitar o primeiro", disseram policiais de uma unidade masculina de Santa Catarina, segundo contam presos LGBTI+.

Os tapas e socos no peito são muito marcantes por não se aceitar uma mudança, uma prótese mamária. É uma forma de violência contundente. A utilização da violência contra aquilo que não se aceita.
Bárbara Suelen Coloniese

Peritos verificaram relatos de abusos, xingamentos e violência sexual, física e psicológica
Peritos verificaram relatos de abusos, xingamentos e violência sexual, física e psicológica Imagem: Arquivo pessoal / ONG Somos

"Terrorismo de gênero"

A tortura é uma regra geral do tratamento penal dessa população, segundo Guilherme Gomes Ferreira, ativista na ONG Somos - Comunicação, Saúde e Sexualidade, que também participou das inspeções. "As pessoas têm medo de se autodeclarar. Essa camada de terror não é experimentada por todas as populações privadas de liberdade", declara o assistente social.

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Há uma norma que reconhece o uso do nome social, acesso a hormônios e à garantia da visita íntima. Resolução do CNJ de 2020 prevê que juízes levem em consideração a preferência dessas pessoas quanto ao espaço de cumprimento da pena.

Violações de direitos são mais recorrentes em prisões com populações LGBTI+ pela violência empregada por agentes penitenciários e pela discriminação disseminada entre organizações criminosas. "As carreiras de policiais e servidores penitenciários são por excelência heteronormativas e com uma masculinidade hegemônica", diz Ferreira.

O Brasil tem um investimento do ponto de vista jurídico para proteger direitos de pessoas LGBTIs, mas, contraditoriamente, é um dos países que mais tortura essas pessoas. Essa realidade é impressionante e revela um terrorismo de gênero.
Guilherme Gomes Ferreira, ativista na ONG Somos

Em uma unidade masculina em Mato Grosso do Sul, equipes técnicas afirmaram aos peritos que quando pessoas LGBTI+ ingressam na unidade são obrigadas a raspar o cabelo. Já em Santa Catarina, segundo o relatório, somente pessoas presas com nome social feminino tinham o direito de manter os cabelos longos.

Algumas unidades têm espaços chamados de "seguro" — locais em que ficam pessoas ameaçadas por outros presos. Os espaços servem para garantir a integridade física de LGBTIs, mas "com grande potencial de isolamento".

No Pará, a inspeção verificou que, em uma unidade masculina, são utilizados contêineres para alocar presos LGTBIs. Os espaços apresentam umidade, frio e calor. Segundo o documento, não é permitido o uso de ventiladores.

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Há relatos que indicam que policiais penais jogam spray de pimenta e fecham os contêineres. A prática configura tortura psicológica, segundo os peritos.

Inspeção apontou que agentes impediam remédios de chegarem às presas como forma de represália
Inspeção apontou que agentes impediam remédios de chegarem às presas como forma de represália Imagem: Arquivo pessoal / ONG Somos

Restrição a alimentos e hormônios

Os peritos afirmam que a restrição na alimentação de pessoas LGBTIs foi utilizada como forma de "castigo". A limitação no uso da água também foi relatada aos peritos.

A principal demanda por saúde é o acesso ao conjunto de hormônios que a população trans utiliza para alcançar características que estejam de acordo com suas identidades de gênero. Nas unidades masculinas, 8 dos 12 estados inspecionados não promovem acesso aos tratamentos. Já nas unidades femininas, em nove estabelecimentos não foi constatado acesso.

"Queria acessar um exame de HIV, mas os agentes disseram: 'Por mim, você morre de aids'". Essa foi uma das frases relatadas por uma pessoa privada de liberdade a Ferreira durante as inspeções.

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Outro lado

Bahia: a SEAP (Secretaria de Administração Penitência e Ressocialização) declara que as denúncias de tortura e violência sexual "se referem ao período anterior da atual gestão". A pasta diz ainda que "conduz as unidades prisionais do Estado com política de tratamento humanitário aos internos, não cabendo atos como esses citados no relatório de inspeção".

Pará: a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária informou que "repudia qualquer forma de violência". "Os custodiados LGBTQI+ foram transferidos para uma unidade referência na custódia de internos com bom comportamento para receber o público LGBTQI+."

Goiás: a Diretoria-Geral de Administração Penitenciária do Estado informou que garante os direitos assegurados pela Constituição Federal e pela Lei de Execução Penal. "Todas as denúncias recebidas de eventuais violações de direitos humanos dentro do sistema penitenciário goiano são tratadas com a devida responsabilidade e agilidade."

Mato Grosso do Sul: a Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário informou que adota políticas para tornar a "custódia nas unidades penais mais humanizada." "A pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade tem o direito de ser chamada pelo nome social, de acordo com o seu gênero, direito que é observado desde o momento de inclusão no presídio."

Santa Catarina: a Secretaria de Administração Prisional e Socioeducativa informou que "tem movido cada vez mais esforços para alocação da população LGBTI+ em áreas específicas no sistema prisional e trabalha junto ao Poder Judiciário no respeito à questão da autodeclaração."

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Rio Grande do Sul: a respeito do relato de uma situação de violência na unidade mista, a Susepe (Superintendência dos Serviços Penitenciários) declara que "tomou as providências cabíveis e instaurou um Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) para apurar o caso". Segundo a pasta, a mulher trans violentada "recebeu acompanhamento da equipe técnica do estabelecimento e foi para o regime de monitoramento eletrônico em 2022".

São Paulo: a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) afirma que "cumpre a determinação judicial para custódia da população trans e travesti" conforme determinação do CNJ. A pasta diz que o "relatório apresentado foi realizado em 2021, período de pandemia de covid-19 e que exigia, à época, uma série de restrições para conter a doença nos presídios paulistas, dentre elas visitas a custodiados, que passaram a ser feitas com limite de aproximação".

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