'Me deixou e nunca mais vi': País tem 8 casos de abandono de menor por dia
João*, 9, havia chegado no Rio há 10 dias quando foi abandonado pela tia, dependente química, no centro da cidade, em junho deste ano. Os dois vieram da Bahia — os pais dele, também usuários de drogas, ficaram no estado. Encontrado por adolescentes que faziam um trabalho escolar, o menino foi deixado aos cuidados de guardas municipais, que o levaram para o Conselho Tutelar.
Em setembro de 2022, Lucas*, 9, saiu para jogar bola com os amigos e, ao voltar para casa, no Rio, se deparou com a casa vazia: a mãe havia se mudado com os irmãos mais novos e o deixou para trás.
Situações de abandono como a de João e Lucas acontecem pelo menos oito vezes por dia no Brasil, segundo dados do SNA (Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento), do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), e obtidos pelo UOL via Lei de Acesso à Informação.
País tem 32 mil acolhidos
O Brasil registrou 27.059 acolhimentos de crianças e adolescentes entre 0 e 18 anos com o motivo "abandono pelos pais ou responsáveis" de 2015 até julho deste ano. É uma média de 262 casos por mês.
Ao todo, o país tem hoje 32.869 menores em 6.580 locais — a maioria são instituições, mas também há programas de acolhimento familiar. A ida para esses centros pode ocorrer por várias razões além do abandono. Há casos de negligência, violência (física, psicológica ou sexual), situação de rua e outros cenários que colocam esses menores em perigo.
O acolhimento é determinado pela Justiça da Infância e da Juventude e solicitado pelo Conselho Tutelar. "[O menor] vai para o abrigo e, no período de 30 dias, fazemos a busca pela família. Se a gente não encontra esses familiares ou se encontrando eles não têm condições de cuidar da criança, ela é encaminhada para a adoção", explica a juíza Katy Braun do Prado, da Vara da Infância, da Adolescência e do Idoso de Campo Grande.
Bebê abandonado ao ir para UTI
O abandono ocorre em diferentes faixas etárias. "No caso de bebês e recém-nascidos, geralmente ocorre por causa de mulheres que enfrentam uma gravidez indesejada e, num estado de muita vulnerabilidade emocional, não veem outra alternativa e abandonam o bebê em locais que expõem a perigo inicialmente, mas com a expectativa de que alguém vai encontrar e cuidar dele", explica a magistrada.
Um bebê de um mês que precisou ficar internado na UTI foi abandonado pela família em Goiânia. O caso ocorreu no mês passado. A conselheira Alba Dourado, responsável pelo caso, explicou que o menino precisou ser transferido para outra unidade de saúde logo após o nascimento em razão de problemas que demandavam cuidados intensivos. Ele recebeu alta, mas ninguém da família apareceu para buscá-lo.
A mãe não apareceu durante um mês. É um abandono de incapaz, porque nem a mãe, nem a família, nem ninguém apareceu na maternidade. Então, a assistente social ligou para o Conselho Tutelar. Procuramos os familiares, mas não encontramos. Eu levei para o abrigo e a última notícia que tive é que uma avó estava buscando por ele. Alba Dourado, conselheira tutelar
O ato de abandonar incapaz é crime. As penas variam de seis meses a três anos de detenção, mas podem ser aumentadas para de quatro a doze se essa ação resultar em morte. Segundo Alba, um boletim de ocorrência foi feito contra a genitora e um relatório sobre o caso foi encaminhado à Vara de Infância e Juventude de Goiânia.
Segundo a juíza Katy Braun do Prado, o abandono de crianças e adolescentes também são comuns. "Há casos de crianças que são encontradas sozinhas em casa. Os pais saem, deixam elas sem nenhuma supervisão de adulto. E às vezes isso se prolonga por dias, a criança chora, os vizinhos descobrem e acionam as autoridades", diz.
Outros motivos citado pelos familiares que recorrem ao abandono são mau comportamento ou em casos de doença mental, conta a juíza.
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Quero receberAs famílias não encontraram no serviço público de saúde um apoio para aquela criança ter o mínimo de condições de habitar com ela, e aí elas vêm e procuram o Poder Judiciário. Do mesmo modo, são os adolescentes usuários de substâncias psicoativas. Eles passam a praticar pequenos delitos para adquirir as drogas, se tornam violentos com os pais e, na maioria das vezes, também subtraem objetos de casa para poder comprar drogas. Chega um momento que a família não suporta mais essa convivência, é uma outra situação que a gente enfrenta com muita regularidade. Katy Braun do Prado, juíza da Vara da Infância, da Adolescência e do Idoso de Campo Grande
Diretora do abrigo Vivendas da Fé, no Rio, para onde Lucas* foi levado após ser deixado pela mãe, Verônica Abreu, diz que o impacto do abandono reflete na saúde física e mental das crianças.
É um trauma, porque é um abandono emocional e físico. A criança chega no abrigo arrebentada. Não quer comer, às vezes fica com febre, saem erupções na pele. [No caso do Lucas] a gente conversou muito antes do desligamento dele [o menino foi acolhido por uma família há cerca de dois meses], foi uma situação muito difícil. A criança quando sofre esse abandono fica num casulo ou extravasa, bate nos colegas, quebra coisas. Verônica Abreu, diretora do abrigo Vivendas da Fé
Abandono aos 5 anos
Sara (o sobrenome foi omitido para preservar a entrevistada), 20, viu a mãe pela última vez quando tinha 5 anos. A mulher deixou a filha sob os cuidados de uma conhecida, disse que voltaria logo, mas nunca mais foi vista. "Não sei o motivo [do abandono], até tentei conseguir contato com ela, mas como eu era muito pequena e cheguei sem documentos na casa da mulher que me adotou, não sei o sobrenome dela e isso dificulta a busca", conta.
Vivendo com uma nova família, Sara viveu uma rotina de violência. "Ela bebia e me batia muito, me jogava da escada. Na escola percebiam, mas eu mentia que tinha caído. Com 10 anos eu cozinhava, sabia fazer tudo, porque tinha que cuidar de outras crianças", relembra. Numa tentativa de morar com um tio na Bahia, foi abusada. Aos 11, fugiu de casa e passou por vários abrigos.
Hoje, ela mora no Celeiro Vó Tunica, em São Paulo, uma república que acolhe jovens em processo de desligamento desses serviços. Sara cursa o ensino médio, faz cursos de capacitação e planeja fazer faculdade de design de interiores.
Como denunciar
Se uma pessoa tem notícia de algum fato que coloque alguma criança ou adolescente em risco, deve denunciar ao Conselho Tutelar, à polícia ou no Disque 100, canal de denúncia anônima do governo federal, que funciona 24 horas, todos os dias da semana.
* Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos menores
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