Militar em protesto e cota feminina: o que pode mudar com nova lei da PM?

A lei orgânica nacional das PMs (Polícias Militares) e dos Corpos de Bombeiros foi aprovada em 7 de novembro, e agora depende da sanção do presidente Lula para padronizar as normas das corporações em todo país. Para entidades civis, porém, a nova legislação dará grande poder às polícias. Já representantes da classe policial elogiam boa parte da lei.

O debate em torno do projeto foi marcado por pressão de entidades civis, que queriam vetos a artigos, e pelo apoio intenso da ala bolsonarista do Congresso Nacional.

O que dizem entidades

A nova lei não revoga, mas atualiza um decreto de 1969, criado com base no AI-5 da Ditadura Militar, que rege as corporações.

Foi um projeto para fortalecer a autonomia das polícias e o processo de militarização. Estamos dando mais poder. Cada vez mais elas ficam sem controle.
Fransérgio Goulart, do Grupo de Trabalho de Defesa da Cidadania, composto pelo MPF-RJ, OAB-RJ e Defensoria Pública

Ela traz um avanço porque padroniza a organização das corporações, dos efetivos, das garantias e das vedações do policial militar.
Tenente Luís Cláudio de Jesus, diretor jurídico da Anermb (Associação Nacional de Policiais Militares e de Bombeiros)

O que muda com a nova lei

  • Comando das PMs fica subordinado ao governador.
  • PMs podem produzir e executar ações de inteligência e contrainteligência.
  • PMs são obrigadas a ter ouvidorias militares com subordinação do Comando-Geral.
  • PMs ficam proibidos de manifestação política usando meios da corporação, como farda.
  • Cota de 20% das vagas para ingresso de mulheres nas corporações.
  • Obriga bacharelado em direito para cargos de chefia, administração, direção e cargos correlatos.

Ouvidorias

Se o trecho das ouvidorias obrigatórias nas PMs for sancionado por Lula, especialistas dizem que a sociedade pode perder ouvidorias externas —elas servem como elo entre o cidadão e o serviço público, recebendo denúncias, críticas e sugestões sobre o trabalho.

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A lei não proíbe as ouvidorias externas, mas força seu desuso, diz Renato Lima. "Os governadores não estão proibidos de criar ouvidorias externas, mas isso pode fazer o Tribunal de Contas questionar o motivo de ter duas para o mesmo objetivo, causando duplicidade de gastos. Como a lei obriga na PM, a externa fica prejudicada."

"É muito ruim porque tira do controle externo essa ferramenta e até mesmo o acesso de policiais que usam desse meio, pois elas recebem denúncias não apenas do cidadão, mas também dos militares. Vinculada ao comandante, também fecha a porta aos pares", diz Carolina Ricardo, do Instituto Sou da Paz.

Projeto dá brecha para fins de ouvidorias externas, dizem especialistas
Projeto dá brecha para fins de ouvidorias externas, dizem especialistas Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons

Os militares contestam essa interpretação e consideram que as ouvidorias internas serão "uma ferramenta a mais".

"Entendemos que os militares já apuram com muito rigor os desvios de conduta. Essas ouvidorias são mais mais um mecanismo para isso. Será apenas uma ferramenta a mais para a sociedade levar suas reclamações", afirma o tenente Luís Cláudio de Jesus, diretor jurídico da Anermb (Associação Nacional de Policiais Militares e de Bombeiros).

Manifestação política de militares

A lei orgânica veta o uso de meios da corporação, como farda, para situações de caráter político-partidário. Isso foi considerado uma vitória dos militares.

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"Com a discussão que se acirrou de militares na política nos últimos anos, o que foi inserido na lei é um mecanismo para deixar isso claro. O militar continua como um cidadão, mas a sua opinião política não pode ser usada através de meios militares", afirma o tenente Luís Cláudio.

Pazuello discursa ao lado de Bolsonaro em ato no Rio
Pazuello discursa ao lado de Bolsonaro em ato no Rio Imagem: Reprodução

Por outro lado, entidades veem que a lei se mostra omissa ao não vetar a participação de militares à paisana. Em 2021, por exemplo, o ex-ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, não usou farda em um ato político ao lado do então presidente Jair Bolsonaro, no Rio, e foi absolvido pelo Exército.

"Esse dispositivo não vai mudar em nada porque os regulamentos já proíbem, mas abre margem para que, se o militar estiver sem farda, possa participar", diz Renato Lima.

Cota feminina

O artigo 15 da lei diz que é "assegurado" o mínimo de 20% das vagas de concursos públicos para mulheres.

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Para o GT em Defesa da Cidadania, o percentual desestimula o ingresso na corporação. O ideal, segundo a entidade, seria não estipular mínimo ou máximo. "Não tem equidade. É um retrocesso em relação a essa questão", diz Fransérgio Goulart.

Lei pode limitar mulheres na polícia, entendem ONGs
Lei pode limitar mulheres na polícia, entendem ONGs Imagem: Divulgação/PM-SC

O mesmo entendimento tem Carolina Ricardo, do Sou da Paz. "O percentual para as mulheres, da forma como está redigido, dá a entender que é um teto."

Os militares defendem a cota, mas consideram que esse trecho pode ser alvo de ações judiciais. Em setembro, o ministro Cristiano Zanin, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu o concurso da PM do Distrito Federal em razão da cota de 10%. Ele considerou que a reserva de vagas vai contra a igualdade de gênero.

"Atualmente, a maioria das legislações estaduais estabelece 10%, então vai dobrar com essa nova lei. Agora, esse dispositivo deve gerar ainda grande discussão no próprio poder judiciário", diz o tenente Luís Cláudio.

Comando da PM subordinado ao governador

O artigo 7 da lei diz que policiais militares e bombeiros devem se subordinar aos governadores. Isso esvaziaria a função das Secretarias de Segurança Pública, que têm a missão de coordenação das forças policiais, dizem entidades civis.

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A Anermb, maior entidade de classe das polícias estaduais, refuta essa possibilidade e diz que isso "não influencia em nada".

Não está dito de maneira clara, mas quem é especialista como a gente sabe que o projeto dá um pontapé para os estados acabarem com as secretarias de Segurança Pública. É mais uma forma de não poder exercer o controle civil.
Fransérgio Goulart, membro do Grupo de Trabalho de Defesa da Cidadania

O projeto é mal redigido para a sociedade, mas bem redigido para a polícia. Aumenta demais o poder de barganha do comandante-geral.
Renato Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Governador de SC, Jorginho Mello (PL), em passagem de comando dos bombeiros
Governador de SC, Jorginho Mello (PL), em passagem de comando dos bombeiros Imagem: Eduardo Valente/Secom-SC

Bacharel em direito para cargos de gestão

Outra novidade é a obrigatoriedade do bacharelado em direito para militares que ocuparem cargos de oficiais.

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Isso é uma bobagem, só aproxima mais [o militar] da carreira jurídica, de querer ser uma espécie de promotor ou juiz [dentro da corporação], sendo que o conhecimento do policial deve ser mais amplo, como de gestão estratégica, de pessoas e de criminologia.
Carolina Ricardo, do Sou da Paz

O ponto também não agradou os militares. Eles dizem que o ideal seria ter uma carreira única, começando desde soldado para todos e com igual nível de escolarização, e não com militares já iniciando como oficiais devido à formação acadêmica.

PM pode exigir bacharel em direito para oficiais
PM pode exigir bacharel em direito para oficiais Imagem: Secretaria de Segurança Pública do PR/Divulgação

A divisão entre praças e oficiais com formação em direito seria uma espécie de "segregação", consideram.

"Deveríamos ter carreira única e com nível de escolaridade igual para o ingresso. Há diferenciação com a divisão de quadro e com isso nós não concordamos. Mas, infelizmente, nem sempre ganhamos tudo, principalmente para poder destravar o projeto no Congresso", diz o tenente Luís Cláudio, da Anermb.

Ações de inteligência da PM

Com atividade-fim baseada em operações ostensivas, a PM também ganha em lei o direito de "produzir, difundir, planejar, orientar, coordenar, supervisionar e executar ações de inteligência e contrainteligência".

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Entidades civis pontuam que o trecho tem o problema de não limitar o poder da PM, podendo invadir a função da Polícia Civil.

Para os militares, o limite da PM "já existe nos estados" e respeitam "muito o papel da polícia judiciária".

"Houve omissão para delimitar mais sobre o uso da força e gestão de protocolos das polícias", diz Carolina Ricardo.

Ações de inteligência não estipulam limite da PM em nova lei
Ações de inteligência não estipulam limite da PM em nova lei Imagem: Reprodução/Alberto Maraux/SSP-BA

Avanço singelo

Apesar dos impasses, o projeto demonstra singelo avanço, avaliam entidades, ao obrigar as polícias a publicar os seguintes relatórios anuais:

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  • Denúncias recebidas e apuradas contra militares, com divulgação dos tipos de sanções aplicadas;
  • Quantidade de atendimentos policiais, por tipo de ocorrência;
  • Letalidade e vitimização de policiais e de civis;
  • Orçamento previsto e executado.

A lei não teve grandes avanços a não ser ter o processo de burocratização da atividade policial, como relatórios de gestão. Mas na essência ela é quase como uma casca para um todo no qual a origem está contaminada.
Renato Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

"Poderia ter muito mais informação, mas já é um avanço porque hoje em dia não tem uma padronização do que é para ser público. A taxa de letalidade, por exemplo, a gente caça em outras fontes", diz Carolina Ricardo.

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