'Muita gente passa fome': ela mostra o 'lado invisível' de estudar na USP

Luana Nascimento, 23, é estudante de estatística da USP, a melhor universidade da América Latina. Mas a aprovação no vestibular não apagou os problemas da jovem, que nasceu e cresceu na comunidade Pedreirinha, em Mauá (SP). Ela é uma entre os milhares de alunos que precisam de ajuda para permanecer na universidade.

Eu passei por insegurança alimentar a minha vida inteira. Não tinha o que vestir, o que comer, o que calçar. E eu tenho um pai especial, que tem esquizofrenia, e por causa disso a minha mãe nunca pôde trabalhar. Ela sempre estava cuidando dele, detalha a jovem ao UOL.

As dificuldades e o sonho de estudar

O pai de Luana recebia um benefício do governo, cortado várias vezes ao longo dos anos, com a exigência de novas perícias para comprovar que ele precisava do dinheiro. Nesses períodos, a família da jovem, que tem mais três irmãos, dependia da ajuda de conhecidos e dos bicos da mãe, que fazia bolos por encomenda.

Jovem não sabia da existência de faculdades gratuitas. Foi só no final do ensino médio, feito todo na escola pública, que ela soube sobre a chance de estudar sem mensalidade, o que "plantou" a ideia em sua cabeça.

Ex-aluno palestrou na escola de Luana e falou da USP. O rapaz contou sobre o emprego e sobre os inúmeros países que tinha conhecido depois de se formar na USP. E, por acaso, ele era graduado em estatística.

"Achei que ele ia falar que fez medicina, engenharia, esses cursos mais comuns, mas ele falou que fez estatística. Encarei como um sinal e decidi que ia prestar vestibular."

Os professores pagaram a inscrição de Luana no vestibular, já que o prazo para pedir isenção da inscrição já havia passado. Sem confiança de que poderia passar na USP, ela decidiu prestar apenas Unicamp.

A jovem foi aprovada, mas enfrentou demora para receber os auxílios da universidade. Ela tinha dificuldades, inclusive, para conseguir visitar a família, a cerca de 150 km de onde estudava.

Uma amiga viu que eu estava precisando e cedeu um quarto. Na moradia estudantil eram quatro meninas por casa, e ela conseguiu um lugar. Meu auxílio-alimentação também não tinha saído e ela conseguiu um para mim pra que pudesse bandejar nesse meio-tempo.

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A veterana que ajudou Luana era Larissa Figueiredo, que morreu no ano passado de leptospirose, poucos dias após uma inundação em sua casa.


Ela foi uma das pessoas que mais me ajudou no início, me deu o livro de cálculo, foi um anjo na minha vida. Acabei desistindo da Unicamp porque enfrentava dificuldades em tudo, inclusive em voltar para São Paulo, mas mantive contato com ela.

Da universidade ao telemarketing

De volta a Mauá, Luana teve que começar a trabalhar para ajudar nas despesas de casa, encontrando uma vaga em telemarketing.

Mas o sonho não tinha morrido: em seu tempo livre - algumas horas pela manhã e outras no final da noite - ela continuava estudando para tentar a aprovação na USP, mais perto dos pais.

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A aprovação chegou em 2020, mas não deu fim às dificuldades da jovem em busca do diploma. Em apenas um mês de aulas, foi decretado o isolamento social pela covid-19.

Um problema se resolvia e aparecia outro. Eu não tinha computador, não tinha internet boa pra acompanhar, não tinha uma estrutura familiar para que eu pudesse estudar. Eu não tinha nada pra acompanhar o semestre online,

Luana detalha que os auxílios da USP para as aulas on-line, como notebook e modem de internet, chegaram só no final do primeiro semestre. Antes, ela contou com a ajuda de um colega de sala para tentar manter os estudos.

Ele já tinha feito medicina, é anestesista, mas gosta muito de estatística e estava fazendo a segunda graduação. Quando ficou sabendo da minha situação, ele me ofereceu um notebook novo, foi lá nas Casas Bahia e comprou um computador pra mim, que eu uso até hoje.

Como é morar na USP

Em 2022, quando as aulas voltaram a ser presenciais, Luana resolveu deixar Mauá e se mudar para o Crusp - o Conjunto Residencial da USP, prédios dentro do campus que abrigam mais de mil alunos.

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"Eu fui morar no bloco F, que é o pior que tem. A estrutura é muito sucateada. O meu quarto não tinha nenhum móvel e era puro mofo, com muita infiltração."

Eu dormia em um colchão no chão e comecei a ter início de pneumonia. Além disso, já estava começando a passar fome de novo, porque às vezes não tinha bandejão. Pensei: 'vou desistir de novo, aqui não é pra mim."

Estudante conseguiu duas viradas em sua vida universitária: um novo apartamento e uma bolsa para se manter. Hoje, ela mora no Bloco B do Crusp, um dos mais bem conservados do conjunto de prédios. Ela conta que a modernização dos apartamentos está em movimento - mas bem mais lento do que esperava. A reforma do Bloco D, por exemplo, começou em 2020 e ainda está na metade.

Eu estava me humilhando pra mobiliar meu quarto antigo. Eu ficava todo dia no grupo do Crusp: 'alguém tem uma cama pra doar?'; 'um guarda-roupa?'; 'uma mesa?'. Aí umas meninas ficaram com dó e me falaram da vaga. Um mês depois eu me mudei. Nesse apartamento, os antigos moradores já tinham feito uma reforma, então está tudo arrumadinho."

Luana gosta de destacar que sua sorte é exceção em meio aos muitos problemas de quem vive no Crusp. "Muitos veem meus tiktoks é ficam: 'esse é o mesmo Crusp que eu conheço?'. E aí eu explico que sou a exceção. Eu tento passar uma imagem real, sem iludir, pra ninguém achar que aqui é muito perfeito. Tento ficar no meio-termo."

Jovem garantiu 3 refeições no final de semana, um direito que a USP não dá

Estudante também teve que lidar com a falta de dinheiro para as necessidades básicas. A solução veio em uma conversa com um professor, quando confidenciou que pensava em desistir da faculdade.

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"Ele me ofereceu uma bolsa do PUB (Programa Unificado de Bolsas), que era destinada a alunos com algum auxílio da USP. Eu desenvolvi uma pesquisa na área de educação, com ele como orientador. Só por isso consegui ficar, porque tinha uma bolsa de R$ 500."

Hoje, as regras mudaram e Luana também recebe R$ 300 por morar no Crusp. Ela continua fazendo compras em Mauá, já que o custo de vida no Butantã, que abriga o campus principal, é bem mais alto.

Estudando em tempo integral, ela conseguiu uma extensão de mais um ano do PUB, que teve um reajuste para R$ 700 mensais.

A faculdade abriu o edital, antes exclusivo para alunos em situação de vulnerabilidade, para todos os estudantes — o que prejudica o alcance do auxílio, hoje muito mais concorrido. Com o dinheiro das bolsas, Luana consegue bancar a própria alimentação nas noites de sábado e domingo, quando o bandejão — que vende refeições a apenas R$ 2 — não abre.

O DCE (Diretório Central dos Estudantes) contou ao UOL que a reitoria prometeu abrir os restaurantes para o jantar aos finais de semana durante a greve que parou a universidade em 2023.

"Apesar disso, não há indicativo de prazo ou sinalizações de que a reitoria esteja trabalhando para que essa promessa seja cumprida. O DCE teve reunião com o Ministério Público e com representantes da reitoria no fim do ano passado e teremos outras este ano para cobrar essa e outras questões a respeito da permanência estudantil", afirmou uma representante do movimento.

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Procurada pela reportagem, a reitoria não comentou sobre planos para garantir a alimentação em período integral.

Estudantes guardam os pães que pegam ao longo das refeições para comer depois. A Cozinha Solidária, criada pelo movimento Correnteza, de moradores do Crusp, também ajuda os alunos que não conseguem comprar comida fora do campus.

Eles fazem a cada 15 dias, no final de semana, mas é uma luta, porque muita gente passa fome. Recebi comentários de muitas pessoas dizendo: 'por que não compra um miojo ou um salgado, é tão barato'. Mas aqui tem inclusive mães, que são muito ajudadas pela cozinha solidária.

Fora do campus, ela encara os pais vivendo em risco

Luana destaca que, agora, sua vida na USP tem até um certo conforto. Mas fora dos limites da universidade, os problemas continuam acumulando.

A mãe da estudante enfrenta uma atrofia nos nervos das mãos, que exige que ela faça uma cirurgia - ela está há três anos na fila pelo procedimento.

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Além disso, a casa em que a família mora, em um terreno de ocupação, começou a ceder.

Ela está rachando todinha, com muita infiltração de esgoto e água. Está muito perigoso morar lá. Eu não via muita gente igual a mim no TikTok, então decidi fazer vídeos. Não é um papo de meritocracia, de romantizar a dificuldade, porque ninguém deveria passar por isso. Foi realmente pra mostrar o que estava na minha bolha."

Mostrar a casa dos pais foi um ponto delicado para Luana, que relutou em gravar o vídeo, mas viu a chance de mudar a realidade dos dois.

"Postei e fui dormir. Acordei com o meu celular travando de tantas mensagens. Fiquei assustada, pensei que ia levar muito hate. Mas foi o contrário, chegou em quem eu queria que chegasse."

O que diz a USP

Em nota ao UOL, USP afirma que as reformas no Crusp demoram por ser "um processo complexo, visto que todos os edifícios estavam, há anos, sem correta manutenção preventiva e corretiva."

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Segundo o DCE, o único bloco em reforma no momento é o D. "Não há previsão de fim, apesar de a entrega ter sido prometida para o ano de 2023. Não há, também, previsão para outras reformas estruturais na moradia estudantil."

A Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da Universidade de São Paulo (PRIP/USP) diz que está encaminhando ou abrindo licitações para novas reformas. A PRIP/USP afirma ainda que comprou novos móveis para os quartos do Crusp, que começaram a ser instalados em outubro de 2023, em lotes.

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