Reconhecimento por foto foi irregular, e professor pode pedir indenização
A prisão baseada em um reconhecimento fotográfico do professor suspeito de um sequestro ocorrido enquanto ele dava aula a 200 quilômetros do local do crime aconteceu de forma irregular, dizem especialistas ouvidos pelo UOL. Segundo eles, o professor pode entrar com pedido de indenização ao Estado.
O que aconteceu
O professor de educação física Clayton Ferreira foi preso após a vítima do sequestro identificá-lo por foto. Ele foi solto dois dias depois. De acordo com o mandado de prisão obtido pelo UOL, o reconhecimento embasou a prisão.
Vítima reconheceu suspeito por foto no portão de casa. À TV Tribuna, a idosa disse que teve dúvidas no momento do reconhecimento e que os policiais foram ao portão da casa dela mostrar a foto, em um celular. Não houve nenhuma sinalização formal para o procedimento. Danilo Reis, advogado do professor, diz que não sabe como a foto dele foi parar com a polícia.
Defesa aponta "erro do inquérito policial". Para Reis, o reconhecimento aconteceu de forma irregular e, sozinho, não serve para embasar um pedido de prisão.
Sucateamento da investigação. Felippe Angeli, coordenador do Justa, centro de pesquisa sobre o sistema judicial, concorda que houve um grave erro na prisão e diz que isso se deve à frágil investigação da polícia.
Na busca da verdade processual, o uso de foto é permitido, mas jamais como prova exclusiva ou prova de um valor probatório. Poderia ser usado como algum tipo de apoio de investigação e, a partir dali, aprofundar o trabalho com perícia. Na escola, ele tem um álibi. A polícia tem que ir até lá e confirmar.
Felippe Angeli, coordenador do Justa
O álibi foi fornecido pela escola onde o professor trabalhava na época. Em uma carta com as folhas ponto assinadas por Ferreira, a escola estadual informou que ele lecionava às 9h do dia 31 de outubro, data e horário do sequestro ocorrido em Iguape (SP).
A polícia deveria pedir prova mais robusta [que o reconhecimento fotográfico]. A prova testemunhal é uma das mais frágeis, porque conta com a memória da pessoa, que muitas vezes estava nervosa durante o crime, com o criminoso tentando disfarçar sua identidade. Não precisa ser advogado para entender a possibilidade de falha de memória, em reconhecimento que acontece dias ou meses depois. O testemunho deve vir corroborado por outra prova.
Felippe Angeli, coordenador do Justa
Prisões equivocadas são frequentes. Guilherme Carnelós, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), afirma que esse tipo de erro se repete em inúmeros casos, ocasionando diversas prisões equivocadas.
O reconhecimento é uma ajuda ao trabalho policial. Não é prova, não pode fundamentar nenhum tipo de medida. Todas as partes erraram --a polícia, o Ministério Público e o Judiciário.
Guilherme Carnelós, presidente do IDDD
'Não tem aquela coisa que a gente vê em filme', diz Carnelós. "São descrições apressadas, malfeitas, que não são capazes de individualizar a pessoa. No Brasil, há uma série de casos de pessoas que foram reconhecidas de forma errônea por características físicas.
O que diz o Código Penal
Reconhecimento por foto não pode fundamentar prisão. Além disso, a Justiça estabelece, por meio do Artigo 226 do Código de Processo Penal, que o reconhecimento fotográfico deve seguir alguns parâmetros:
- a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever quem deve ser reconhecida;
- a pessoa a ser reconhecida deve ser posta, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem semelhança;
- a autoridade providenciará que a pessoa que vai reconhecer e aquela a ser reconhecida não se vejam;
- o processo deve ser acompanhado por duas testemunhas presenciais.
Outras provas de participação em delito. De acordo com a resolução 484 de 2022, "a inclusão da pessoa ou de sua fotografia em procedimento de reconhecimento, na condição de investigada ou processada, será embasada em outros indícios de sua participação no delito, como a averiguação de sua presença no dia e local do fato ou outra circunstância relevante".
Professor pode pedir indenização ao Estado
O juiz que analisou o habeas corpus identificou falha no pedido de prisão. De acordo com Roberto Porto, do TJ-SP, "comprovaram documentalmente os impetrantes que o paciente exerce profissão lícita como professor junto a rede de ensino pública estadual e que assinou regularmente seu registro de ponto no dia do delito".
Caso comprovada a inocência do professor, o processo contra ele deve ser extinto. Mas o sequestro continuaria sem solução, então o inquérito deve ser reiniciado para buscar os verdadeiros culpados.
O processo judicial relativo a esse indivíduo específico termina, comprovada a inocência de forma cabal. Acho que tem um álibi determinante, já que ele estava dando uma aula com dezenas de pessoas como testemunhas. Mas o inquérito original não termina, porque o crime continua tendo acontecido. O que a polícia fez foi identificar de forma errônea uma pessoa, mas o verdadeiro criminoso continua solto.
Felippe Angeli, coordenador do Justa
Professor poderá buscar indenização. Se comprovado o erro da Justiça, a defesa do professor terá a opção de entrar com um processo contra o Estado em busca de reparação pelo constrangimento passado, explica Angeli.
Dificuldades para conseguir reparação. Apesar de ser um direito da pessoa que foi constrangida por um erro da Justiça, a indenização dificilmente sairá, segundo Carnelós, porque há uma resistência do poder judiciário em reconhecer seus erros.
Existe um corporativismo enorme nas decisões. São poucos os exemplos de decisões reconhecendo erros judiciários e se retratando. Geralmente se reconhece, mas a jurisprudência protege o juiz dizendo que ele decidiu com base nos elementos que ele tinha, excluindo o dolo e afastando o direito a indenização. É um absurdo.
Guilherme Carnelós, presidente do IDDD
Entenda o caso
Clayton Ferreira dos Santos foi preso temporariamente na semana passada. A vítima do crime, uma mulher de 73 anos, foi sequestrada e teve R$ 11 mil roubados em Iguape (SP), no Vale do Ribeira.
Escola emitiu declaração informando que o professor estava trabalhando. O documento foi assinado pelo diretor da unidade de ensino onde ele estava empregado na época, a Escola Deputado Rubens do Amaral, no Jardim Saúde, zona sul da capital.
Posso afirmar que ele trabalhou no dia 31. Fiz a declaração dos horários, todos eles, e encaminhei. Estou achando estranha toda essa situação, ele é um professor que nunca deu trabalho, sempre trabalhou certinho. E, de fato, ele estava dando aula
Vilson Sganzerla, diretor da escola
Mais uma pessoa negra, de comunidade, sem apontamento negativo criminal algum, em cárcere por causa de um mero reconhecimento fotográfico
Danilo Reis, advogado de Ferreira
Na quarta-feira (17), o TJ-SP deu decisão favorável ao pedido de habeas corpus feito pela defesa. O professor foi solto na quinta-feira (18).
Secretaria disse haver conjunto de provas
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse ao UOL na quarta-feira (17) que a prisão foi baseada em "conjunto probatório". O TJ-SP informou que o caso está em sigilo.