RS: condomínio de luxo usa dutos clandestinos e causa 'pavor' em comunidade

A instalação de um duto clandestino que escoava água drenada de dentro de um condomínio de luxo na cidade gaúcha de Pelotas para uma comunidade pobre vizinha deixou moradores da região afetada "apavorados" e "revoltados", segundo relatos enviados ao UOL.

Nós ficamos, assim, apavorados. A situação foi muito estressante para os moradores. (...) As consequências imediatas foram que o canal que separa a comunidade do referido condomínio praticamente transbordou, aumentando consideravelmente as chances dessas águas assolarem ainda mais a nossa comunidade. Eliana Cardoso Barcelos, liderança comunitária do Passo dos Negros

Outro morador da cidade de Pelotas e integrante da organização Eco pelo Clima, que monitora e denuncia violações socioambientais no Rio Grande do Sul, afirmou que circulam áudios nas redes sociais de moradores locais se dizendo "revoltados".

"Agora, sabe-se que o condomínio até reforçou a sua segurança armada e está um clima bastante tenso na região porque eu acho que a direção do condomínio não imaginava que esse caso teria tamanha repercussão", relatou Jonathan Feijó.

O que aconteceu

Um sistema de drenagem clandestino construído pela administração do condomínio de alto padrão Lagos de São Gonçalo, em Pelotas (RS), passou a despejar, na quinta-feira (16), volumes de água escoados do empreendimento imobiliário em um território vizinho chamado Passo dos Negros, onde vive uma comunidade de maioria negra e de baixa renda.

A água era drenada por meio de uma bomba e de um duto instalados sem a autorização da Prefeitura de Pelotas, segundo divulgado pela gestão municipal.

O objetivo era escoar a água de lagos artificiais do condomínio, que estavam com falhas no sistema original de drenagem subterrânea, para fora da área residencial privada, segundo apurado pela reportagem.

"Foi comentado até que houve uma votação em que a maioria do conselho do condomínio votou a favor da instalação dessa nova bomba para substituir a subterrânea, apesar de um ou outro falar sobre o risco dela também. (...) E hoje, o que circula bastante aqui agora nos grupos e redes sociais é que as pessoas [do Passo dos Negros] estão revoltadas", relatou Jonathan Feijó, da organização Eco pelo Clima.

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Condomínio Lagos de São Gonçalo, em Pelotas (RS)
Condomínio Lagos de São Gonçalo, em Pelotas (RS) Imagem: Divulgação

Tanto a comunidade como o condomínio estão localizados às margens do canal São Gonçalo, que é monitorado pela Prefeitura de Pelotas por risco de inundação.

"Imagina o absurdo que é, além dessa catástrofe já anunciada das chuvas no Rio Grande do Sul, nós sermos prejudicados com esse duto. Nós ficamos bem impactados com a situação, alagou bastante ali a nossa área que fica ao fundo do condomínio", afirmou Eliana Cardoso Barcelos, liderança comunitária do Passo dos Negros e presidente da organização Cuidando de Nós, que promove ações sociais às famílias locais.

'Tira dos ricos, bota no lugar dos pobres'

No mesmo dia da ativação do sistema de drenagem clandestino, vídeos da tubulação que escoava a água do empreendimento para a comunidade vizinha passaram a circular e repercutir nas redes sociais.

"Olha o que os caras estão fazendo. Adivinha para onde vai?! Para o pessoal pobre lá do outro lado", narrou o autor de uma das gravações ao mostrar um trecho do duto na parte interna do condomínio. "Tira dos ricos e bota no lugar dos pobres. Dinheiro compra tudo", seguiu ele.

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Nas últimas semanas, muitas famílias do Passo dos Negros tiveram de deixar suas casas, classificadas pela Prefeitura de Pelotas como em situação de risco de inundação imediata, ressaltou Jonathan Feijó. O município localizado no sul do estado entrou em estado de calamidade no dia 8 de maio.

Muitas pessoas já tinham saído das suas casas para buscar refúgio em abrigos ou casas de familiares e se deparam com essa situação em que são ainda mais lesadas pelo condomínio. Isso para além de tudo que eles já passam na região, que é uma área sensível de banhado e que, com a chegada de novos empreendimentos imobiliários, ficou ainda mais suscetível a alagamentos. Jonathan Feijó

'Negra Pelotas'

De acordo com Feijó e Eliana Barcelos, a comunidade, localizada no bairro dos Navegantes, é considerada um "patrimônio histórico de valor ancestral" e "reduto da resistência negra" no Rio Grande do Sul.

Passo dos Negros é um patrimônio histórico da negra Pelotas, que não se reconhece como negra, mas é, na sua base. Os negros vindo de África, quando chegaram ao Brasil, foi por esse território. Um dos tantos caminhos de entrada da população negra no país, embora os livros de história raramente digam que há negros aqui no Rio Grande do Sul. Eliana Cardoso Barcelos

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Segundo um artigo divulgado pelo Grupo de Pesquisa Margens, da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), o território abrigou o primeiro porto do município gaúcho, "sendo o local de entrada de pessoas escravizadas" e uma importante região para "a construção da cidade de Pelotas, com histórias de famílias que trabalham e moram há décadas na região".

"Hoje em dia, é uma área que está sofrendo especulação imobiliária com riscos dos moradores serem removidos para a construção de condomínios de luxo", diz um trecho do artigo divulgado pelos pesquisadores.

Prefeitura se diz surpreendida

Com a repercussão dos vídeos, a prefeitura de Pelotas acionou o MP-RS (Ministério Público do Rio Grande do Sul), que solicitou à Petram (Polícia Ambiental) e ao Sanep (Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas) que fossem ao condomínio para "verificarem in loco a situação e notificarem administrativamente e criminalmente os responsáveis pela obra emergencial".

Ontem, no fim da tarde, nós fomos surpreendidos por uma notícia acompanhada de um vídeo de uma bomba instalada em um lago de um condomínio fechado e particular, com uma canalização aérea jogando água para fora do tal condomínio. Isso nos surpreendeu demais porque não tinha absolutamente nenhuma autorização do município, do Sanepe, nenhuma informação para nós porque ninguém tinha conhecimento disso e nós ficamos indignados. Prefeita de Pelotas, Paula Mascarenhas (PSDB), em gravação divulgada nas redes sociais um dia após a ativação do duto.

Em seguida, Mascarenhas completou: "Então vamos deixar muito claro que não tem nenhuma relação com a Prefeitura, nenhuma aprovação, nenhuma autorização. (...) A bomba já foi desmontada, toda aquela obra e os responsáveis vão responder, prestar as informações, e segue o curso normal das coisas".

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O MP-RS informou por meio de nota enviada à reportagem que "tão logo tomou conhecimento do possível extravasamento indevido de água por meio de uma bomba instalada em um condomínio na cidade de Pelotas, tomou as medidas cabíveis".

Num primeiro momento, o promotor de Justiça Adriano Zibetti acionou o Sanep para obter informações a respeito da possível autorização, pela autarquia, para o equipamento, tendo sido respondido que sequer havia conhecimento a respeito de sua instalação. Trecho de nota do Ministério Público gaúcho

Com base nessas respostas, seguiu o MP, "foi acionado o Comando da Polícia Ambiental para que efetuasse diligências no local para confirmar o ocorrido, uma vez que, em tese, havia indícios de possível descumprimento das condicionantes da licença existente para a drenagem pluvial do empreendimento".

O Sanep autuou o condomínio pelo descumprimento do artigo 152-C do Código de Instalações Prediais do Município (alterar canalizações, ligações, sistemas de escoamento, de recalque e de grupos elevatórios sem projeto aprovado e sem prévia autorização do serviço). "Houve, ainda, a desmontagem e retirada da bomba instalada. Após o recebimento da ocorrência policial, o MP-RS instaurou expediente para apurar as circunstâncias do fato", concluiu o órgão.

Procurada, a administração do condomínio encaminhou o contato do síndico do residencial, Pablo Monquelat, que retornou por meio de nota sem responder aos questionamentos da reportagem.

"O Condomínio Lagos de São Gonçalo não se furtará de prestar todos os esclarecimentos necessários, mas o fará de forma responsável e oportunamente, pois neste momento encontra-se reunindo provas para demonstração da lisura do procedimento, o que torna inviável o atendimento ao convite para a entrevista", informou o síndico.

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