Álcool X crack: 'Na 'cachaçolândia', meio litro custa R$ 3, a pedra, R$ 20'
Dados da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) mostram que o álcool é a segunda substância mais usada na Cracolândia, quase empatando com o crack, com uma diferença de 15,2 pontos percentuais.
O que aconteceu
Dados da Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas) da Unifesp revelaram que, em 2022, 78,9% dos frequentadores da Cracolândia, na capital paulista, relataram usar crack, enquanto 63,7% consumiram álcool. Esse foi o último levantamento publicado pelo departamento, que já prepara um novo relatório, com dados de pesquisas de campo recentes.
A diferença no consumo pode ser ainda menor, segundo especialistas ouvidos pelo UOL. O álcool é frequentemente consumido junto com o crack, sendo seu uso secundário, o que pode subestimar sua presença nas estatísticas. Usuários nem sempre mencionam o álcool como substância principal.
Para Flavio Falcone, psiquiatra que atua na Cracolândia desde 2012, o consumo de bebidas na região pode ser maior que o do crack. Ele afirmou recentemente, em um podcast, que a cachaça, vendida a preços baixos, é amplamente consumida na região, ultrapassando o crack em termos de consumo.
"A base para a minha afirmação de que a cachaça é a droga mais consumida é a minha experiência empírica", declara Falcone. Embora não tenha conduzido uma pesquisa científica específica, ele observa que a bebida alcoólica é predominante devido ao baixo custo e alta acessibilidade. "Eu percebo que a pessoa usa o crack mais para se manter acordada do que como droga principal, por conta do preço", acrescenta.
Falcone destaca que a cachaça é vendida tanto no fluxo de usuários quanto em estabelecimentos comerciais ao redor da Cracolândia. Um corote de meio litro custa R$ 3, enquanto uma pedra de crack custa R$ 20, tornando o álcool mais acessível.
Consumo por classes dominantes pode mascarar o problema na Cracolândia. Falcone aponta que a cachaça, consumida pela "elite branca de São Paulo", contribui para um "apagamento" do problema, já que se evita reconhecer que uma substância tão difundida pode causar tantos problemas.
Cachaça e violência
O consumo de cachaça está fortemente associado à violência na Cracolândia. Falcone relata que todos os casos de violência que presenciou, incluindo assassinatos, estavam ligados ao consumo de cachaça. "A violência geralmente tem a cachaça como facilitador," afirma.
Além disso, o psiquiatra destaca os desafios da abstinência do álcool. "Os sintomas de abstinência da cachaça são mais severos e, às vezes, letais. É muito mais difícil tratar alguém que quer parar de usar cachaça do que alguém que usa só crack," alerta Falcone.
Regis Adriano, ex-usuário e conselheiro em dependência química, critica a sociedade por subestimar os perigos do álcool. Ele passou quase 30 anos lutando contra a dependência de várias drogas, incluindo álcool e crack, e argumenta que o álcool é frequentemente subestimado.
"A sociedade finge que o álcool não existe, mesmo com os inúmeros problemas que ele causa", afirma Adriano. Ele compartilha sua experiência pessoal, revelando como o álcool atuou como um gatilho para seu retorno ao uso de crack. "Eu consegui deixar o crack de lado, mas toda vez que bebia, voltava ao uso de drogas. Por isso, cortei o álcool completamente", diz Adriano.
O CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) foi fundamental na recuperação de Adriano. Ele enfatiza que as práticas de redução de danos, que ajudam a pessoa a reduzir o consumo gradualmente, foram cruciais para sua sobriedade e deveriam ser mais amplamente aplicadas como alternativa ao proibicionismo.
Mal menor
O psiquiatra Thiago Fidalgo, professor da Escola de Medicina da Unifesp, destaca que o álcool é a droga mais consumida no Brasil. Além de ser barato e acessível, o álcool é socialmente aceito, contribuindo para seu uso generalizado. "O crack é amplamente disponível e barato, mas as pessoas têm mais clareza sobre seus malefícios. Já o álcool é visto como um mal menor", afirma.
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Quero receberFidalgo aponta que o álcool tem consequências graves tanto a curto quanto a longo prazo na saúde mental e física dos usuários. O consumo de álcool pode levar ao envolvimento em episódios de violência, prejudicar o julgamento crítico e agravar o uso de outras drogas como o crack. Ele também destaca riscos de longo prazo, como danos ao fígado e maior risco de câncer.
Enquanto o crack está associado ao tráfico e à violência decorrente do comércio ilegal, o álcool, sendo uma droga lícita, pode levar à violência por meio da intoxicação. Fidalgo observa que as políticas públicas atuais não abordam adequadamente o consumo de álcool na Cracolândia. Ele enfatiza que o maior desafio é desmistificar a ideia de que o álcool é um mal menor.
Dados da Uniad indicam que não houve um aumento significativo no consumo de álcool na Cracolândia desde 2016. O último Lecuca (Levantamento de Cenas de Uso em Capitais) mostra uma prevalência constante de 60% a 65% de bebedores de álcool, sugerindo que, apesar da alta taxa de consumo, não há crescimento acentuado em relação ao crack.
O levantamento, porém, não pode aplicar escalas para rastreamento de alcoolismo, pois entrevista indivíduos nas ruas, muitas vezes sob o efeito de crack. No entanto, presume-se que muitos usuários de crack que também bebem apresentem algum grau de alcoolismo. Historicamente, o levantamento identifica que 13% a 15% dos frequentadores não consomem crack, mas possivelmente são alcoolistas.
Prevalência entre usuários
Os professores Quirino Cordeiro e Clarice Madruga, da Uniad, afirmam que não existem evidências de que o consumo de álcool tenha superado o crack. Em todas as edições do Lecuca, a prevalência do álcool não foi maior que a do crack", afirmam os professores.
Porém, dados do atendimento em cuidados em crack e outras drogas mostram que 80% dos pacientes bebem, e mais de 70% deles têm alcoolismo moderado ou grave. A combinação de crack e álcool é comum, pois as substâncias têm efeitos opostos, aumentando a tolerância e o uso de ambas.
A combinação de crack e álcool é comum e pode agravar os problemas de saúde dos usuários. "O uso combinado de crack e álcool resulta na formação de cocaetileno, uma substância ainda mais tóxica para o sistema nervoso, cardiovascular e hepático", detalham.
Os pesquisadores também ressaltam os riscos da abstinência de álcool, que pode ser severa e até fatal. "A interrupção abrupta do consumo de álcool pode levar a sintomas de abstinência perigosos. É crucial um acompanhamento médico adequado para tratar o alcoolismo", concluem.
Apesar dos dados, a Uniad aponta que não há políticas públicas específicas voltadas para o combate ao consumo de álcool na Cracolândia. As iniciativas existentes focam na repressão ao comércio ilegal, incluindo a venda de corotes, mas não há estratégias de redução de danos voltadas especificamente para o álcool.
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