Não é só italiano: Movimento busca valorização da história negra do Bixiga
O Bixiga, na região central da cidade de São Paulo, é historicamente associado à imigração italiana. Contudo, movimentos sociais negros estão reivindicando uma série de projetos para que os negros oriundos do quilombo Saracura, que ali existiu, sejam reconhecidos.
Movimento de moradores e ativistas sociais veem como essencial o resgate do "Bixiga negro". Entre as principais reivindicações da comunidade estão a nomeação da estação do bairro, que inicialmente foi chamada de 14 Bis, como Saracura Vai-Vai, e a construção e valorização de equipamentos históricos que remetam a comunidade negra do bairro, no coração da maior metrópole do Brasil.
Mudam o nome do Bixiga para Bela Vista, Bela Vista é descaracterização. E agora mais recentemente com o deslocamento do Vai-Vai, também aconteceu isso. Se esse movimento do bairro não se organiza em torno do Saracura, em pouco tempo não haveria nem vestígio de um bairro de negro que veio de um quilombo.
Abílio Ferreira, pesquisador, escritor e morador do Bixiga
A história
O Bixiga foi o primeiro quilombo urbano reconhecido em São Paulo. Na época da escravidão, entre os séculos 19 e 20, negros fugiam de fazendas e engenhos, principalmente no interior do estado, para Saracura, localizado onde hoje é o tradicional bairro na região central da cidade.
O objetivo é combater o apagamento da história negra do bairro. De acordo com ativistas e moradores ouvidos pela reportagem, historicamente, três povos formaram a cultura local: os negros oriundos do quilombo, italianos e nordestinos.
O Bixiga acabou se popularizando como bairro italiano. O pesquisador e escritor Abílio Ferreira, que estuda a história do bairro, relata que o houve um apagamento da herança afro-brasileira, fruto de um projeto baseado no racismo estrutural.
O projeto republicano do Brasil, à época, não provocou uma ruptura com o passado escravocrata do Brasil. São Paulo tem esse fenômeno da imigração italiana, que foi estimulada e a história dos negros tentaram esconder, ou apagar".
Abílio Ferreira, pesquisador, escritor e morador do Bixiga
A morada dos negros e a vinda dos italianos deram uma união comunitária. Mas o que aconteceu foi o apagamento, por conta do racismo estrutural em toda a cidade. Quando a gente fala de cultura negra a gente fala de ações que são marginalizadas, a partir disso é muito mais fácil vender a cultura branca. Por isso, o movimento é discutido por arquitetos, mães de santo, advogados, moradores e representatividades do movimento negro.
Wellinton Souza, membro do Congresso Nacional Afro Brasileiro e do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo
Para garantir um resgate da história desse povo, foi fundado o movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai. O grupo, que existe desde a descoberta do sítio arqueológico Saracura, passou a se reunir mensalmente para discutir medidas contra o apagamento do quilombo. O patrimônio cultural foi descoberto em 2022, durante as obras de construção da estação no bairro, onde deve passar a Linha 6-Laranja do metrô paulistano.
O movimento já conquistou uma vitória: em junho, o governo de São Paulo aderiu a parte da reinvindicação da comunidade e rebatizou a estação que está sendo construída como 14 Bis-Saracura. Apesar da aceitação parcial, a mobilização ainda sugere que a estação se chame Saracura-Vai-Vai. O nome incluiria dois patrimônios da localidade: além do quilombo, a tradicional escola de samba do bairro, fundada há quase 100 anos. Antes do início das escavações para a linha do metrô, na Rua São Vicente, no Bixiga, ficava a sede da agremiação. Com a integração do terreno ao local das obras, a Vai-Vai saiu do bairro e, por isso, há um apelo para que a escola seja lembrada.
O passo inicial do movimento foi quando descobriram as peças. Quando foram demarcadas, o movimento foi criado e passou a pedir para mudar o nome da estação. A gente não entendeu o nome 14 bis, já temos homenagem a Santos Dumont no bairro. Queríamos Saracura Vai-Vai, pelo córrego e pela permanência da Vai-Vai para sempre dentro do Bixiga. Conseguimos alterar parte do nome, mas o governo não aceitou que se chamasse Saracura Vai-Vai.
Solange Sant'Ana, moradora e ex-integrante da Vai-Vai
Atualmente, peças continuam sendo encontradas no sítio e se somam aos 40.000 artefatos históricos já encontrados. Ativistas e moradores ouvidos pelo UOL afirmam que há uma espécie de afastamento do governo do estado da discussão sobre o patrimônio do bairro. Solange Sant'Ana, que integra o grupo que discute o passado e o futuro dos negros bairro, relata que a SPI (Secretaria de Parcerias em Investimentos) não tem participado de reuniões para tratar do patrimônio do Saracura.
A secretaria compõe o grupo de interessados nas obras da estação, junto com a concessionária Linha Uni, responsável pela construção da estação, Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), Fundação Palmares e o próprio Mobiliza Saracura Vai-Vai.
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Quero receberNo final do ano passado a gente fez uma reunião em que compareceram Iphan e outros órgãos aqui no nosso bairro, e ficou acordado que a gente formaria uma comissão que se reuniria uma vez por mês para tratar. Isso não aconteceu, o governo do estado parou de comparecer. A secretaria não vem para discutir. Era uma oportunidade para colocar ideias.
Solange Sant'Ana, moradora e ex-integrante da Vai-Vai
A SPI nega que tenha sido formalizada uma comissão entre os órgãos. Além disso, a pasta diz que tem participado de reuniões e tem interesse em conversar. A secretaria, segundo esclarecimento da coordenação de comunicação, "tenta conciliar e intermediar conversas para encontrar as melhores soluções".
Por fim, a secretaria narra que a responsabilidade pelas deliberações referentes ao sítio é do Iphan. "As escavações continuam acontecendo, objetos continuam sendo encontrados e a obra da estação continua. Mas tem determinações que o Iphan tem que dar". O UOL buscou contato com o Iphan, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.
A concessionária Linha Uni, responsável pelas obras, informou que "cumpre todas as obrigações determinadas pelo Iphan". "No momento, as ações na área continuam sendo realizadas, respeitando-se todas as particularidades dos objetos e da história do sítio. A Concessionária reafirma que todas as atividades de engenharia possíveis de serem executadas paralelamente ao trabalho de resgate arqueológico já foram concluídas", concluiu a nota.
Essas pesquisas avançaram e eles estão atualmente com quatro áreas do nosso sítio arqueológico abertas para tirar os objetos. Muita coisa foi encontrada lá embaixo. É uma disputa grande porque eles queriam fazer uma pesquisa superficial. Mas com o passar do tempo foi se descobrindo muitos artigos importantes para o nosso povo, inclusive religiosos.
Solange Sant'Ana, moradora e ex-integrante da Vai-Vai
Nossa luta atua enquanto movimento, é essa questão, pois o governo do estado está pressionando a população e o Iphan para a estação sair ou não. Aí a gente sai como ruim da história, eles acham que se o metrô não sair é nossa culpa. Mas não é bem assim. A gente quer muito que o metrô saia, mas a gente sabe que não atrapalha as pesquisas arqueológicas e a estação. A gente quer um trabalho bem-feito. E que atrasem sim se necessário for, mas respeitando a história.
Solange Sant'Ana, moradora e ex-integrante da Vai-Vai
Descaracterização do bairro
Além do sítio arqueológico, o movimento tem levantado preocupação sobre a descaracterização do bairro a partir da valorização imobiliária da região. Com a chegada do metrô, já há um movimento intenso de prédios sendo construídos, relatam moradores. Há um consenso sobre a necessidade do transporte no bairro, mas o temor sobre o aumento do valor do metro quadrado é visto pelos ativistas como um aspecto que pode provocar a saída de pessoas de baixa renda e equipamentos da história negra da região.
O pequeno comerciante, a moradia popular não vai conseguir se manter. Já aconteceu isso com a quadra da Vai-Vai. Agora é uma questão de tempo. Já aconteceram obras demolindo casas antigas, históricas, para construir prédios. Você dormia tinha uma casa, acordava tinha um prédio imenso sem interesse social. Esse projeto existe.
Solange Sant'Ana, moradora e ex-integrante da Vai-Vai
O Bixiga é e sempre foi um bairro produtor de cultura. Mantenedor de culturas populares, carnaval, futebol, samba, e esse bairro que vai sedo cercado e 'valorizado' pela expulsão de moradores. É uma disputa territorial simbólica, esse processo de elitização. Há um esvaziamento de memórias para gerar valor financeiro, ao mesmo tempo que eu expulso as pessoas que produziram aquele simbolismo.
Jorge Irû, ator, diretor e morador
Intervenções culturais e movimento negro
A luta pelo reconhecimento do Quilombo Saracura e a preservação da história afro-brasileira no Bixiga se conectam a um movimento mais amplo em São Paulo, que busca resgatar a memória negra da cidade. O Mobiliza Saracura Vai-Vai tem apoio de entidades como o MNU (Movimento Negro Unificado) e Uneafro, que também apontam para a forte presença negra em outros pontos da cidade.
O Bixiga serviu como sede para o MNU em seus anos de fundação, na década de 70. O surgimento é relatado pelos "griots" do MNU, como são chamados os mais velhos, que guardam conhecimentos históricos do povo. A Uneafro, por sua vez, segue com forte atuação no bairro. A sede da organização ainda é no Bixiga.
Como alternativa para resgatar a história negra, organizações promovem intervenções culturais e afroturismo. Além da Vai-Vai, que mesmo fora do Bixiga continua carregando em canções o orgulho de sua origem, grupos teatrais, audiovisuais e outros coletivos contam a história do bairro das mais diversas formas.
Uma das iniciativas que buscam resgatar a história e promover a negritude do bairro é o "Roteiro Negros do Bixiga". O projeto promove uma caminhada por centros culturais e espaços de memória da região, revisitando personagens do passado negro de São Paulo.
A iniciativa busca evidenciar a persistência da ocupação negra na região, mesmo diante dos processos de gentrificação que ameaçam a permanência da população negra. Wellinton Souza, historiador e idealizador do roteiro, explica que o objetivo é mostrar a Bela Vista para além dos cartões postais já conhecidos, como a avenida Paulista.
Quando a gente faz um resgate dessas histórias a gente mostra que o Bixiga não é italiano, é de origem negra. A gente apresenta os guardiões do Bixiga, como a Vai-Vai, a pastoral afro da Achiropita, que teve um padre negro dentro de uma igreja católica e branca, o Padre Toninho. Para contar a história negra a gente não precisa falar apenas de racismo. a gente pode falar de vários outros aspectos.
Wellinton Souza, membro do Congresso Nacional Afro Brasileiro e do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo
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