Maior quilombo do Brasil elege pela 1ª vez o prefeito de cidade de Goiás
A eleição de Vilmar Souza Costa (PSB), 40, para prefeito de Cavalcante (GO) no último domingo (15) guarda alguns marcos históricos: conhecido como Vilmar Kalunga, ele foi o primeiro representante do maior quilombo do Brasil a conquistar um cargo eletivo e, neste ano, foi o único quilombola a conquistar uma prefeitura no país —antes dele, houve apenas um caso, em Açucena (MG), em 2012.
Em Cavalcante, apesar de corresponder à maioria da população local, a comunidade Kalunga ainda não havia conseguido eleger um prefeito. Ele estima que os quilombolas correspondem a 80% dos moradores da cidade —que tem 9.725 habitantes, segundo estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
O prefeito eleito disse ao UOL que foi preciso conscientizar a população para romper estigmas históricos que ainda colocam os quilombolas na incômoda posição de "bons para votar, não para serem votados".
Para ele, isso é fruto da herança histórica de como os negros são vistos e tratados no Brasil. O estereótipo vale especialmente para os que vivem em quilombos, comunidades surgidas a partir da resistência de escravizados.
Eleito com 35,68% dos votos válidos, Costa recebeu o "sim" de 1.959 dos 6.763 eleitores do município da Chapada dos Veadeiros. Apesar de pequena, a cidade teve oito candidatos a prefeito. O segundo colocado foi Paradão (PTB), com 1.511 votos.
Nesta eleição, 57 representantes dos quilombolas foram eleitos, segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Além de Costa em Goiás, houve um vice-prefeito no Maranhão. Os outros 55 se tornaram vereadores em cidades de dez estados diferentes.
Temos sempre que buscar ocupar os nossos espaços também. Gostaria que, na próxima eleição, tivéssemos mais 10 prefeitos quilombolas no Brasil. E gostaria de dizer ao nosso povo preto que vote na gente, que dê confiança ao povo da gente. Nós conhecemos a nossa vivência. Quem sabe do que nós sofremos somos nós.
Vilmar Souza Costa, prefeito eleito de Cavalcante
Para o coordenador executivo da Conaq, Antônio Crioulo, o cenário propicia um novo momento para as lutas coletivas dos quilombolas. Mas, diante das cerca de 500 candidaturas no Brasil, ele pondera que o sistema político e as condições sociais acabaram impediram mais vitórias dos povos tradicionais.
Acompanhei de perto essas candidaturas e ouvi muitos relatos de pessoas invadindo as comunidades, comprando votos com cestas básicas e influenciando na votação. Quando se trata de fome e você tem logo a frente um benefício imediato, as pessoas muitas vezes cedem. A gente não culpa o povo. A gente culpa o sistema que criou esse cenário de vulnerabilidade.
Antônio Crioulo, coordenador executivo da Conaq
Resistência e difamação
Esta não foi a primeira vez que Costa se candidatou. Ele fez parte de uma chapa como vice-prefeito na eleição passada, mas não ganhou. Desta vez, decidiu tentar o cargo de prefeito, depois de 25 anos atuando em movimentos sociais, inclusive na presidência da Associação Quilombo Kalunga (AQK), em Cavalcante.
Ele afirma que foi alvo de uma série de informações falsas, propagadas via aplicativos de conversa, como o WhatsApp. Elas o associavam a uma organização não governamental internacional, o acusavam de vender terras do território Kalunga e de estar recebendo para se colocar como candidato. "Fizeram de tudo para o povo não votar em mim", diz.
Para Crioulo, da Conaq, a vitória de Vilmar pode levar outros territórios quilombolas no Brasil a buscar representantes no Executivo.
Nossas pessoas estão cabisbaixas, não se veem nos espaços de poder. A formação do nosso país tirou do nosso povo o direito de sonhar, mas vitórias como a de Vilmar representam uma luz no fim do túnel.
Antônio Crioulo, coordenador executivo da Conaq
Desrespeito ao povo preto
Vilmar Kalunga disse que é uma decepção grande ouvir o atual presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, chamar o movimento negro de "escória maldita", ou afirmar que não se deveria admirar Zumbi dos Palmares, tampouco apoiar o Dia da Consciência Negra.
"É uma pessoa negra falando essas coisas, sempre nos excluindo do processo. A meu ver, ele não representa o povo preto."
O prefeito eleito de Cavalcante também critica comentários do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que se referiu a quilombolas de forma pejorativa, fato que motivou abertura de processo por danos morais coletivos. "O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriar eles servem mais", disse Bolsonaro em palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, em abril de 2017, quando ainda era deputado federal.
No mesmo ano, Bolsonaro chegou a ser condenado a pagar uma indenização, mas, em 2019, terminou inocentado, após o trânsito em julgado da ação. Para Costa, a fala foi "infeliz".
Levando em consideração que o nosso país é de maioria negra, acho que ele foi infeliz de fazer aquela colocação. Ajudamos a construir esse país. Respeita a minha história.
Vilmar Souza Costa, prefeito eleito de Cavalcante
O território Kalunga
Kalunga, em Goiás, é o maior território quilombola do Brasil. São cerca de 1,7 mil famílias (10 mil pessoas) vivendo em cerca de 262 mil hectares, que cobre três municípios do estado. Além de Cavalcante, chega a Teresina e Monte Alegre.
Como parte da área ainda falta ser regularizada, a AQK iniciou o mapeamento das terras quilombolas para defender seu território. Vilmar Kalunga diz que 140 mil hectares já estão demarcados. O restante segue no aguardo, sendo alvo, vez ou outra, de investidas dos donos de propriedades rurais vizinhas.
Os atritos e embates entre Kalungas e latifundiários diminuíram, segundo Antônio Crioulo, depois que o governo federal regularizou mais uma parte das terras. A postura atual tem sido de conciliação. "Até mesmo em razão do atual governador [Ronaldo Caiado, do DEM], que é ligado aos ruralistas, queremos ver se conseguimos fazer uma gestão de reconciliação", afirma Costa.
A grande briga hoje da comunidade Kalunga, avalia ele, é ter voz. "Tem muitas pessoas que querem falar pela gente, que não são da comunidade e querem nos representar lá fora. A grande questão para nós, hoje, é que tenhamos essa voz e que as pessoas respeitem."
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