Velha nova polarização

Boulos (PSOL) ocupa lugar do PT em São Paulo e repete, contra Covas (PSDB), disputa entre esquerda e tucanos

Felipe Pereira, Nathan Lopes e Marcos Sergio Silva Do UOL, em São Paulo Arte/UOL

Bruno Covas (PSDB), 40, e Guilherme Boulos (PSOL), 38, disputarão, daqui a duas semanas, o segundo turno das eleições paulistanas. O atual prefeito, eleito como vice na chapa de João Doria (PSDB) em 2016, tenta a permanência no cargo —obteve 32,86% dos votos válidos.

Boulos, em sua segunda disputa eleitoral, mesmo com horário eleitoral minguado (de apenas 17 segundos), chega ao próximo turno com 20,24%, impulsionado por uma forte campanha nas redes sociais e que avançou sobretudo nos últimos dias de eleição.

O resultado interrompe uma sequência de oito eleições em que o PT esteve ou na primeira ou na segunda colocação da eleição paulistana. O candidato do partido, Jilmar Tatto, não decolou e viu antigos militantes migrarem para Boulos.

A disputa, no entanto, repete no segundo turno uma fórmula que só não funcionou em 2016, quando Doria venceu no primeiro turno: um candidato com forte vínculo com os tucanos contra outro de esquerda. Foi assim em 2004, em 2008 (quando Gilberto Kassab, então no DEM, desbancou Geraldo Alckmin com o apoio velado de José Serra) e em 2012.

Boulos vai ocupar um lugar que era dos petistas desde 1988, quando foi eleita sua candidata a vice, Luiza Erundina. É a primeira vez que o PSOL chega ao segundo turno na eleição paulistana. Aproveitou-se do derretimento do candidato do Republicanos, Celso Russomanno, além do voto útil dos mais identificados com o petismo. Ainda na noite de domingo, recebeu apoios declarados do candidato derrotado do PT e do ex-prefeito Fernando Haddad.

Covas arrancou para a liderança nas últimas semanas, tirando Russomanno da liderança. Teve, como aliados, o maior tempo de TV e também a exposição provocada pela pandemia de coronavírus —desde março, esteve ao lado do governador Doria em entrevistas que foram diárias por meses.

PAULO GUERETA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO

Covas, o anti-Doria

De dentro do seu carro, vestindo máscara, Bruno Covas narrava seus desejos e verdades no horário eleitoral, o mais longo dos 14 candidatos à Prefeitura de São Paulo. Uma delas é ser político, a quem defende pagar salários —sem ele, diz, a função ficaria fadada apenas aos mais ricos.

É um duplo twist carpado em comparação ao antecessor João Doria, de quem herdou o cargo. O agora governador de São Paulo renegava a política e chamava a imprensa para divulgar a doação de seus vencimentos. Não por acaso —e também por sua rejeição na capital— Doria sumiu da campanha tucana neste ano.

O prefeito e candidato à reeleição é de uma linhagem familiar de políticos que começa com o seu avô, Mário Covas. Como o neto, Covas assumiu seu primeiro cargo no Executivo sem receber um só voto —foi nomeado prefeito de São Paulo em 1983 pelo então governador Franco Montoro em uma época ainda sem eleição para os chefes das capitais brasileiras. Também como Bruno, saiu do primeiro mandato com um capital político eleitoral muito maior do que quando entrou.

Bruno não dependeu nesta eleição de padrinhos, como Doria fez com Geraldo Alckmin em 2016. Neste ano, a distância dos caciques foi até benéfica.

No discurso que fez ainda na noite de domingo, Covas disse ter vencido "os radicais" no primeiro turno e que iria novamente derrotá-los no segundo. A referência era explícita ao adversário, Guilherme Boulos (PSOL), e um aceno ao voto mais centrista.

Se vencer, Covas tem o desafio de reerguer a cidade depois de meses sob quarentena, sem a pressão de um ano eleitoral como está sendo este 2020.

Tem, também outra árdua batalha: contra um câncer na cárdia, localizado na transição entre o estômago e o esôfago, diagnosticado no ano passado. A doença, segundo os médicos do prefeito, está controlada. Ele segue com o tratamento imunoterápico e não há previsão de término.

Se vai continuar os passos do avô —fundador do PSDB em 1988, candidato a presidente em 1989 e governador por dois mandatos—, Covas terá que calcular de maneira bastante precisa o próximo movimento. O paulistano não reagiu bem aos últimos dois tucanos que entregaram o mandato sem cumpri-lo até o fim (antes de Doria, José Serra fez isso em 2005).

Contra ele, pesa o vice, Ricardo Nunes (MDB). Uma empresa da família do candidato a vice-prefeito recebeu R$ 50 mil de creches conveniadas com a prefeitura para prestação de serviços sem licitação no ano passado. As creches são dirigidas por aliados políticos do candidato, que é vereador desde 2012.

Covas diz confiar no parceiro de chapa. "O vereador Ricardo Nunes já está no seu oitavo ano de mandato, não responde a nenhum processo judicial, não há nenhuma denúncia que ele responda no Judiciário." O processo, no entanto, ainda está em andamento.

Divulgação/Assessoria de imprensa Guilherme Boulos

A virada de Boulos

Guilherme Boulos passou boa parte da campanha como o terceiro colocado nas pesquisas de intenção de voto. A virada aconteceu nos últimos dias, com o derretimento de Celso Russomanno (Republicanos). No fim de outubro, segundo o Datafolha, seis em cada dez paulistanos conheciam o candidato do PSOL.

Mesmo com um tempo de candidato nanico no horário eleitoral, Boulos conseguiu reverteu a invisibilidade. A campanha do líder do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) mais parecia a de uma cidade do interior: um aceno, uma apresentação para alguém que não o conhecia até mesmo no bairro em que mora há sete anos, o Campo Limpo (zona sul).

Adversário de Bruno Covas no segundo turno das eleições, já partiu para o ataque ao vinculá-lo ao governador do estado, João Doria, e culpando-o pelo "abandono" da periferia —o tucano escondeu o correligionário no primeiro turno.

"Estamos no meio da crise do coronavírus, São Paulo esta com hospitais fechados. A periferia está abandonada pelo PSDB. Eu não sou daqueles que aparecem na periferia de quatro em quatro anos para fazer promessa e tirar foto. Para mim, a periferia e as pessoas que estão aqui não são estatísticas, são gente com histórias e trajetórias", disse o candidato.

O psolista teve melhor desempenho nas regiões centrais. Com o discurso, tenta atrair o eleitor que votou em Jilmar Tatto, com maior adesão nas periferias sul e leste da cidade.

Boulos repete a estratégia dos primeiros anos do PT, incluindo o mesmo marqueteiro, Chico Malfitani, que conduziu as campanhas petistas na cidade até 1992. Até mesmo um mascote, que havia sido usado nas campanhas de 1985 (Eduardo Suplicy) e 1988 (Luiza Erundina), foi ressuscitado.

A candidatura de Boulos reposiciona o PSOL no jogo político paulistano. Até então, o partido lançava quadros nem sempre competitivos. Desde 2008, disputaram as eleições para a prefeitura pelo partido os deputados Ivan Valente e Carlos Giannazzi e a ex-prefeita Luiza Erundina, que vinha de três derrotas para a prefeitura (1996, 2000 e 2004) e obteve seu pior desempenho em 2016. Neste ano, Erundina é candidata a vice na chapa de Boulos.

Na avaliação de Valente, por exemplo, a chegada de Boulos trouxe um verniz que faltava ao PSOL paulistano: o dos movimentos sociais. O MTST, como ator político, teria papel semelhante aos dos sindicatos na ascensão política do PT na década de 1980.

A maior visibilidade de Boulos também se deve ao engajamento do hoje candidato na resistência ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, e à prisão de Lula, há dois anos. O hoje psolista se engajou nas duas causas e estreitou a aproximação com o ex-presidente.

Ganhando ou perdendo no dia 29 de novembro, Boulos já está cacifado como um dos grandes nomes da esquerda no país. Termina a corrida com percentual maior do que o de Fernando Haddad (PT) na campanha para a reeleição à prefeitura em 2016.

Na ocasião, Haddad perdeu para Doria, mas surgiu como candidato competitivo à Presidência em 2018, respaldado por Lula. Com o PT minguando não só em São Paulo, e se eventualmente não vencer a disputa paulistana, Boulos poderá repetir a mesma trajetória daqui a dois anos.

Alexandre Schneider/Getty Images Alexandre Schneider/Getty Images

Uma pandemia no meio do caminho

O efeito da pandemia na votação começa já na data da eleição. Ela voltou a ocorrer em 15 de novembro depois de 32 anos —a última vez que o primeiro turno das eleições municipais aconteceu nesta data foi em 1988.

Com o decreto da quarentena em vigor desde 23 de março em São Paulo, as atividades de campanha ficaram restritas. Não houve comício, nem passeatas. Eventos que provocaram aglomeração, como um adesivaço de Guilherme Boulos no largo da Batata, em Pinheiros (zona oeste), no dia 1º, provocaram recomendação de cautela por meio do Ministério Público Eleitoral.

O cuidado com as medidas sanitárias evitaram até mesmo cenas típicas de campanha —como almoçar no Bom Prato, tomar a famosa média na padaria de bairro e apertar as mãos de quantos puder. Em seu lugar, vieram soquinhos de cumprimento e uma intensificação de carreatas.

Sem tempo para as ruas, Covas aproveitou o pequeno latifúndio na TV, de três minutos e 29 segundos, com uma campanha austera, focada na resistência do candidato ao drama de um câncer e no enfrentamento da pandemia na cidade.

Personagem central nas eleições presidenciais de 2018 e aposta de vacina contra as restrições sanitárias, as redes sociais foram usadas mais por candidatos com menos tempo de TV em busca de protagonismo.

Foi o caso de Boulos. Com 17 segundos na TV, o psolista, de forma criativa —usando termos associados à imagem do candidato, como as "invasões" em casas de apoiadores incentivadas por convites nas redes—, atingiu a parcela do eleitorado de 16 a 24 anos vinculada às pautas identitárias e de esquerda.

Nativo das redes, o candidato do Patriota, Arthur do Val, o Mamãe Falei, conseguiu crescer nas intenções de votos, mesmo com os 17 segundos no horário eleitoral. Na linha oposta de Boulos, atraiu o eleitorado jovem de direita.

WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO

Justiça e fake news

Novembro começou com uma tensa contagem de votos nas eleições presidenciais dos EUA e o candidato derrotado, o republicano e atual presidente, Donald Trump, recorrendo à Justiça para frear a vitória do adversário, o democrata Joe Biden. Por aqui, guardadas as proporções, os juízes também foram chamados.

Primeiro foi Joice Hasselmann (PSL) quem a convocou, ao pedir que o tucano Bruno Covas explicasse a contratação por R$ 10,2 milhões com a empresa Yuyu Produções pela Prefeitura de São Paulo. A prefeitura afirmou que o contrato "transcende o período eleitoral".

Celso Russomanno tentou censurar a pesquisa Datafolha de 11 de novembro. O levantamento só foi divulgado quase na madrugada do dia seguinte, quando a decisão, duas vezes tomada pelo juiz eleitoral Marco Antonio Martin Vargas, foi derrubada por outro juiz, Afonso Celso da Silva. Russomanno aparecia pela primeira vez fora do segundo turno.

A Justiça Eleitoral também foi instada a combater ataques, fake news e uso das redes sociais de políticos e candidatos. O próprio Russomanno teve vídeo retirado do ar, cujas informações passou durante o debate UOL/Folha, ao atribuir o uso de empresas laranjas pela campanha de Guilherme Boulos. A notícia, produzida pelo blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio, era falsa.

Arthur do Val teve cinco derrotas seguidas no TRE-SP (Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo) por tentar impulsionar publicidade negativa contra o candidato do PT, Jilmar Tatto. Também é investigado por calúnia ao insinuar associação do petista com o crime organizado.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) também foi acionado por suas lives de quinta-feira para impulsionar aliados. Em São Paulo, o candidato beneficiado foi Russomanno.

Orlando Silva (PCdoB) e Joice entraram com ações contra as exibições presidenciais. A Lei das Eleições trata como conduta vedada ao agente público "ceder ou usar, em benefício de candidato [...], bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União" —e os perfis oficiais de Bolsonaro têm sido usados como veículos de comunicação institucional do Planalto.

O caso mais curioso, no entanto, fica para Filipe Sabará. O candidato do Novo foi desfiliado pelo partido em meio à corrida municipal e viu sua vice renunciar. Sem legenda e sozinho na chapa, acabou eliminado pela Justiça Eleitoral.

Marcelo Pereira / SECOM

Querida, escondi meus padrinhos

Os figurões da política brasileira ficaram de fora da eleição paulistana. Geraldo Alckmin, principal alicerce da eleição de João Doria para a prefeitura em 2016, foi tirado da coordenação da campanha do tucano Bruno Covas após ser denunciado pelo Ministério Público de São Paulo por corrupção passiva, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.

Doria, de quem Covas herdou a prefeitura em 2018, nem pode ser considerado um padrinho: não apareceu em eventos de campanha e só foi defendido pelo candidato tucano quando perguntado duas vezes pelo psolista Guilherme Boulos no debate UOL/Folha. A tentativa de colar a imagem do impopular governador, a julgar pelos números da eleição, não colou.

O ex-presidente Lula, aquele mesmo que alavancou Fernando Haddad à prefeitura em 2012, apareceu nas inserções de Jilmar Tatto na TV, mas foi insuficiente para o candidato demonstrar alguma viabilidade.

Celso Russomanno, cuja imagem associada às ações televisivas de defesa do consumidor sempre o coloca entre os primeiros nas pesquisas iniciais, recorreu a Jair Bolsonaro para frear sua queda nas pesquisas. Se o presidente o ajudou ou não, só o eleitor escondido em frente à urna eletrônica poderá dizer.

Por outro lado, figuras dissociadas de lideranças já estabelecidas, como Guilherme Boulos e o ex-governador Márcio França (PSB) —mesmo com apoio tardio de Ciro Gomes—, tiveram seu quinhão abastecido pela fração que negou vínculos antigos. Os desempenhos dos dois candidatos, por sinal, foram os melhores da história dos seus partidos.

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

Muitos candidatos, poucos debates

Disputaram a eleição municipal deste ano 14 candidatos. Destes, 11 tinham, por obrigação da lei eleitoral, condições de participar dos debates eleitorais das TVs.

A crise sanitária provocada pela pandemia de coronavírus, no entanto, inviabilizou encontros tão gigantescos. Foram realizados apenas dois encontros pelas emissoras: um na Band e outro na Cultura. Nas duas vezes, candidatos abusaram das tabelinhas e de alguns ataques.

Globo e CNN tentaram restringir os encontros aos melhores colocados, mas não obtiveram a adesão da maior parte dos postulantes e desistiram. Rede TV! e Record também.

Sem a necessidade cumprir o requisito por não serem concessões públicas, UOL/Folha e Estadão fizeram encontros mais restritos.

No caso do debate UOL/Folha, o formato foi inovador: os quatro primeiros colocados no Datafolha de 5 de novembro tinham um banco de 15 minutos para responderem perguntas de jornalistas, dos próprios candidatos e de líderes da sociedade civil.

Covas foi o principal alvo, com Boulos prensado por uma fake news de Celso Russomanno, desmentida depois do debate. Boulos ficou atônito, perdeu tempo e deixou que os adversários Russomanno e França utilizassem o latifúndio de tempo economizado durante o encontro.

ANANDA MIGLIANO/O FOTOGRÁFICO/ESTADÃO CONTEÚDO

A novidade foi o velho político

O discurso "contra tudo o que está aí" já não teve o mesmo efeito nesta eleição das anteriores. Os chamados "outsiders" já não eram tão outsiders assim —os dois que mais se encaixavam no termo, Arthur do Val e Joice, já cumprem mandatos parlamentares, inclusive— e sobraram candidatos já há muito tempo na política.

O jovem Bruno Covas, candidato à reeleição que já foi secretário e deputado, usou o horário eleitoral para dizer o quanto adora ser político e que o salário de prefeito é o único que tem.

Celso Russomanno, deputado desde 1995, com um pequeno intervalo sem mandato entre 2011 e 2014, nem tinha como esconder o profissionalismo do seu politiquês, candidato que era à prefeitura pela terceira vez.

Márcio França apostou na experiência como prefeito de São Vicente e também no curto período em que ocupou o Palácio dos Bandeirantes em 2018.

Boulos, líder do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), quando instado a falar de sua inexperiência, recorria à sua vice, a ex-prefeita Luiza Erundina, 85 anos e muitos mandatos como deputada federal.

Jilmar Tatto se lembrou de seus cargos nas prefeituras petistas de Marta Suplicy e Fernando Haddad —e nem tinha como negar a política, com sua família com vagas municipais, estaduais e federais no parlamento. Orlando Silva (PCdoB) mirou Bolsonaro e foi o único a federalizar de fato a disputa.

E foi uma eleição sem nanicos ou sem que você os percebesse. Os sem-tempo Levy Fidelix (PRTB), Vera Lúcia (PSTU) e Antonio Carlos (PCO) deram seu alô nas sabatinas, mas não tiveram tempo nem mesmo para o folclore. É a crônica de uma eleição sem aerotrens, metafóricos ou não.

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