Esquerda encara desilusão de eleitores e se fecha para período de balanço

O desempenho dos partidos de esquerda nas eleições municipais deste ano coloca em xeque o futuro desse campo político no país. O PT conquistou 252 prefeituras e sai das urnas com mais prefeitos do que em 2020 — quando registrou 183 administrações municipais.

O desempenho, porém, ainda é tímido. Ficou no passado o patamar de 2012, quando conquistou 625 cidades, o maior número de sua história. O PSB foi a legenda progressista mais exitosa, com 309 prefeituras, o PDT alcançou 151, e o PCdoB, 19.

A maior expectativa era em relação ao PT, especialmente por ocupar a presidência da República. Com o resultado aquém do esperado, lideranças históricas do partido afirmaram ao UOL que terminado o segundo turno, começa um período de "balanço", com reuniões marcadas pela direção nacional do partido a partir desta segunda-feira (28).

O ex-ministro chefe da Casa Civil do governo Lula, José Dirceu, afirmou em entrevista a um podcast na semana passada que "há consenso no PT" que a sigla precisa de renovação. Segundo ele, é preciso fazer uma nova avaliação do mundo e do país.

"É hora de relermos esse mundo. Relermos, inclusive, a própria realidade brasileira, porque o PT evidentemente perdeu territórios para forças políticas de direita. A direita se estruturou", diz Dirceu. "Uma coisa é o ódio e a violência que introduziram à política brasileira, que o Bolsonaro introduziu. Outra coisa são as visões da família, da sociedade, da vida, do trabalho, do mundo, da religião. Isso não é polarização, isso é politização."

O próprio presidente Lula disse, após o primeiro turno, que é preciso rediscutir o papel do PT na disputa eleitoral. "Obviamente é muito importante 'fazer prefeito' porque é o primeiro passo no atendimento das políticas públicas da sociedade brasileira."

Nós ficamos para trás nas redes, nós ficamos para trás na formação política e nós ficamos para trás na construção do pensamento político.
José Dirceu, ex-ministro chefe da Casa Civil

Eleitor desiludido

A desconexão com o eleitorado de classes mais baixas, fruto do afastamento das periferias, é consenso entre as lideranças de esquerda. A ausência de um projeto político com pautas modernas contribuiu para a desilusão do eleitor de esquerda — que não só deixou de acreditar nas legendas como também passou a buscar representação em siglas de centro e direita.

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O motorista de aplicativo Helenilson Bezerra Barbosa, 38, chegou a fazer campanha voluntariamente para o presidente Lula, então candidato à presidência pelo PT, em 2002. Há 17 anos em São Paulo, hoje ele se diz "desiludido" com a esquerda. "Eles venderam esse sonho lá atrás e não cumpriram. As pessoas já sonharam com essas promessas uma vez", afirma.

Nascido na cidade de Buíque, em Pernambuco, Helenilson lembra que pintou casas, hasteou bandeiras e colou adesivos do PT em veículos em período de campanha. "A gente acreditava que Lula era a pessoa que ia mudar tudo", lembra. O problema, segundo o motorista, é que Lula "sempre deu o peixe, mas não cumpriu a promessa de ensinar a pescar".

Helenilson diz que viu políticos do PT em 2006 sugerindo que o Bolsa Família e o programa de cisternas contra a seca poderiam acabar se o PT não fosse reeleito, o que lhe pareceu uma ameaça, e o deixou decepcionado com o partido "Eles [candidatos petistas] diziam que não iam mais abastecer as cisternas se outro candidato vencesse", afirma. "Ajudavam, mas não davam autonomia."

Quase duas décadas depois, o motorista afirma se identificar mais com a direita. "Os políticos não podem só dizer que vieram da periferia, têm que mostrar como melhoraram de vida", diz ele, que votou no candidato à Prefeitura de São Paulo pelo PRTB, Pablo Marçal.

Identitarismo divide a esquerda

O sociólogo Jessé Souza, autor do livro recém-lançado "O Pobre de Direita: A Vingança dos Bastardos", acredita que a defesa das pautas ditas "identitárias", defendidas pela esquerda, deve ser repensada. Para Souza, elas foram criadas para causar divisões. "A extrema-direita se aproveita disso", diz. Heloísa Murgel Staling, historiadora, cientista política e professora da UFMG, também afirma que é preciso "sair do lugar da divisão".

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"Todos esses movimentos são importantes porque estão no campo dos direitos." Mas a forma de comunicar-se ficou marcada como um tema de comportamento, ou costumes, e não como um tema que fortalece a democracia. Mais ainda, a pauta alcança um público de classe média e alta, e não conversa com o eleitor de baixa renda.

A cientista política da PUC-SP Deysi Cioccari aponta que a esquerda tem dificuldades para dialogar com as classes C, D e E. "O campo perdeu a conexão com esse eleitorado", diz. Trata-se de um eleitor que quer melhorar financeiramente e romper com sua condição de baixa renda.

O candidato à prefeitura de São Paulo pelo PSOL, Guilherme Boulos, reconheceu em uma sabatina que a esquerda deixou de dialogar com grupos que desejam prosperar individualmente — e que, na ausência desse diálogo, a extrema-direita avançou.

No diagnóstico de Deysi, a ascensão social se tornou um caminho burocrático na esquerda. "A economia tem que crescer para as pessoas melhorarem a condição social. Mas a população entendeu que não vai prosperar trabalhando das 8h às 18h", diz. "O empreendedorismo hoje é um discurso que soa estranho na boca da esquerda".

A falta de conexão com as bases e a desilusão do eleitorado também foram agravadas com as crises protagonizadas pelo PT desde 2015. "Tivemos o Mensalão, a Lava Jato, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que representou uma quebra na estrutura democrática", pondera Deysi. "Isso provocou uma sensação de cansaço muito grande, as pessoas não querem se envolver, o que gerou o fenômeno de criminalização da política", diz.

Desde então, analistas apontam que a esquerda não conseguiu apresentar um projeto de país atualizado. "É preciso chamar as pessoas para pensar no futuro", afirma Heloísa, da UFMG. "É como se estivéssemos lá atrás, olhando para o Brasil lá atrás. Como vai ser amanhã? Como vamos defender a democracia e proteger as cidades?", diz ela, que é autora do livro "Brasil: uma biografia".

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O PT ficou congelado nas pautas dos anos 1990. É preciso modernização. Não é possível continuar com o mesmo discurso de anos.
Deysi Cioccari, cientista política da PUC-SP

Vácuo nas periferias

Ao mesmo tempo em que o campo da esquerda reúne forças para enfrentar as crises impostas na política institucional, um movimento significativo ganha força no vácuo deixado nas periferias.

Moradora da Chácara Santo Antônio, a empresária Amanda Pereira Santana, 32, diz que apoiou o PT por anos. Ela conta que chegou a ir a encontros do partido com a mãe. "Minha mãe gostava [do partido], minha avó também. Foi passado de geração em geração", afirma. "Eles passavam a mensagem de que se importam com os oprimidos", diz ela. Amanda diz se lembrar de ter visto Marta Suplicy (PT) quando vivia no Capão Redondo. "Mas, depois das eleições, acabou".

Hoje, Amanda diz que é de direita. Isso porque, segundo ela, quem está mais presente na região em que vive são os políticos de direita. A empresária diz que o prefeito Ricardo Nunes esteve em Parelheiros e conversou com moradores. "Quando ele não vem, manda representantes", afirma. "Quando chovia, ninguém passava entre Parelheiros e Varginha. Era uma região completamente debilitada, mas agora colocaram tubos, temos asfalto, infraestrutura, o comércio melhorou", diz ela.

Ricardo Nunes (MDB) em missa na zona sul em último dia de campanha
Ricardo Nunes (MDB) em missa na zona sul em último dia de campanha Imagem: Victória Cócolo/Folhapress
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A presença de políticos nas periferias tem a ver com a liberação de emendas parlamentares na capital paulista. No município de São Paulo, esses recursos do orçamento público não são impositivos. Com isso, o prefeito pode ou não liberar o recurso - e quem tem dominado esse dinheiro é a base de vereadores ligada a Nunes. "O uso de emendas revela estratégias de conexão com as bases eleitorais", diz Deysi.

Jessé Souza afirma que a direita e a religião souberam capitalizar a raiva da população mais pobre. Para ele, a extrema direita se alia à religiosidade neopentecostal para fisgar a parcela da população que não tem acesso a melhores condições de vida do mundo moderno. "É o branco pobre de São Paulo e do Sul" e o "negro evangélico do resto do país", avalia. "O principal elemento aqui é a desorientação do povo pobre."

As periferias não foram tocadas pela mensagem da esquerda. É onde ela deve chegar. A impressão que a gente tem é que está tudo dominado pelo pentecostalismo e especialmente pelo neopentecostalismo. A situação é de reconquista.
Jessé Souza, sociólogo

Guilherme Boulos participa de evento com evangélicos e ouve "oração pela virada"
Guilherme Boulos participa de evento com evangélicos e ouve "oração pela virada" Imagem: Bruno Luiz/UOL

Em busca de novas lideranças

Para Heloísa, não é possível pensar em futuro político sem novas lideranças. "Todo o campo progressista precisa construir novas lideranças", diz. Segundo a cientista política, alguns nomes devem despontar: o prefeito de Recife, João Campos (PSB), a candidata derrotada à Prefeitura de São Paulo pelo PSB, Tabata Amaral, e a prefeita reeleita de Contagem (MG), Marília Campos. Ela aponta ainda que é necessário "unir forças" e "ultrapassar estruturas partidárias".

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A historiadora defende que o campo da esquerda precisa "sair da zona de conforto". Segundo ela, isso significa entender as novas demandas sociais. "É preciso entender o que significa empreender, como essas pessoas estão empreendendo", afirma. Para Deysi, a mudança deve começar pela autocrítica. "Depois disso, sair das dependências do Lula e buscar líderes para reconstituir suas bases", diz.

A cientista política da PUC-SP destaca que a esquerda deve atualizar os discursos. "A esquerda tem que priorizar a segurança pública, buscar o diálogo com as igrejas, espaços de fé. A reconexão não pode ser só discursiva e eleitoral, tem que entregar aspectos práticos para a população."

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