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Após fim da invasão dos EUA, refugiados veem Iraque destruído e temem voltar ao país

Fernanda Calgaro

Especial para o UOL Notícias<br>Em Londres

12/09/2010 07h00

Em busca de uma vida melhor, muitos iraquianos tentam a todo custo deixar o país destruído. Os que conseguem, mesmo que ilegalmente, não querem voltar de jeito nenhum. No Reino Unido, as queixas dos refugiados iraquianos a respeito de seu país são inúmeras.

Falta água potável, e o fornecimento de energia elétrica dura apenas três horas por dia. O desconforto piora no verão, quando o calor chega a 50ºC e os aparelhos de ar-condicionado não têm como ser ligados. A corrupção disseminada e a indefinição política sobre quem vai governar o país --mesmo após seis meses das eleições parlamentares-- acabam refletindo em mais violência nas ruas.

A retirada das tropas dos EUA após sete anos e meio de operações no Iraque também não ameniza as críticas. Sobram reclamações à invasão americana ao Iraque, e as críticas vêm inclusive de pessoas perseguidas na época do regime do ditador Saddam Hussein, derrubado do poder em 2003.

"A situação de agora está muito, mas muito pior do que antes da invasão americana. Cerca de um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza", afirma a ativista política curda Houzan Mahmoud, 37 anos. Ela teve de fugir do Iraque em 1996 depois de um irmão ser morto pelo exército do governo. Conseguiu asilo na Inglaterra, onde vive desde então. "Não tive infância. Várias vezes fomos nos refugiar nas montanhas para sobreviver".

"A indústria nacional está destruída e tampouco há produção na agricultura. Eles conseguiram o que queriam: o Iraque virou um mercado consumidor para os países vizinhos, principalmente do Irã", diz a ex-professora de filosofia Awatyf Al-Ibadi, 58 anos. Ela chegou como refugiada em Londres com o marido e os filhos em 1991, depois de viver no Líbano, na Síria e no Iêmen.

Iraquianos no Reino Unido

  • Fernanda Calgaro/UOL

    Dashty Jamal atende refugiados iraquianos

  • Fernanda Calgaro/UOL

    Hemn Karim teve asilo política negado

  • Fernanda Calgaro/UOL

    Houzan Mahmoud fugiu do Iraque em 1996

A escritora e ativista Sana Al-Khayyat, 63 anos, aumenta o coro: "O país está completamente quebrado, não tem nenhum tipo de infraestrutura". Ela vive na Inglaterra há mais de 30 anos, mas toda a sua família continua no Iraque. "Apesar da ditadura política, o Iraque era uma sociedade muito moderna".

Ela lembra que certa vez, em 1991, uma de suas irmãs, ao visitá-la em Londres, se espantou quando soube que Sana não tinha faca elétrica nem processador de comida. "Naquela época, a vida dela era boa. Havia até uma empregada doméstica na casa. Hoje, se não sou eu para mandar dinheiro no fim do mês, ela não tem o que comer".

Neste verão, para driblar o calor escaldante, Sana alugou uma apartamento em Istambul, na Turquia, por seis semanas, para onde levou seu irmão e as duas irmãs. "São pessoas de bastante idade, com problemas de saúde que só se agravam com o calor excessivo".

Autora do livro "Honour and Shame" (sem tradução no Brasil), em que traz relatos de iraquianas sobre assuntos tabu como sexo, Sana critica o que ela chama de retrocesso em relação aos direitos da mulher. "Os Estados Unidos e seus aliados colocaram no poder grupos religiosos radicais, que defendem a sharia, a lei islâmica. É um absurdo".

Awatyf, que voltou ao Iraque 40 dias após a queda de Saddam Hussein para rever as duas filhas do primeiro casamento depois de 24 anos, ficou chocada ao encontrar as netas pequenas usando véu na cabeça. "Perguntei para a minha filha o motivo e ela disse que agora todo mundo usava e que era melhor colocar por questão de segurança". Ela retornou ao país diversas vezes e diz que a situação só vem piorando. Segundo ela, taxistas que transportarem mulheres sozinhas chegam a ser presos.

Deportação

No escritório com espaço para apenas duas mesas, o telefone da Federação Internacional de Refugiados Iraquianos, que funciona numa rua tranquila perto de King's Cross, no norte de Londres, não para de tocar. O clima é de tensão. Atarefado, Dashty Jamal, 40 anos, presidente da entidade, interrompe a entrevista várias vezes para atender as ligações.

"São chamadas locais, mas também é gente do Iraque e da Alemanha, onde a instituição tem representação", justifica. É que, naquela segunda-feira (6), mais um grupo com dezenas de iraquianos embarcaria de volta, deportados. Pelo celular, Heman Osman, 37 anos, fala de dentro de um centro de detenção perto do aeroporto de Gatwick, ao sul da capital inglesa, enquanto aguarda pelo seu voo. "O Iraque não é seguro. Tenho medo do que pode me acontecer lá", diz.

Com receio de ter o mesmo fim, o poeta Hemn Karim, de 29 anos, teve o seu pedido de asilo político negado pelas autoridades do Reino Unido. Há cinco anos vivendo em Leicester, perto de Birmingham, ao norte da Inglaterra, ele pretende apelar da decisão.

"Se voltar para o Iraque, vou morrer. Eles chegaram a ir até a minha casa para me matar, mas não fizeram isso porque minha mãe estava lá", diz ele, que é filiado a um partido de esquerda no seu país. Há quatro meses, perdeu o contato com a família, depois que os parentes se mudaram por falta de segurança. "Não é um país livre, não é como dizem", afirma Karim, natural da cidade curda de Kirkuk, ao norte do Iraque.

Divisão da população

Na opinião do ex-jornalista Abbas Al-Faiadh, 65 anos, marido de Awatif, a maneira como foi estruturada a divisão de poder após a queda de Saddam Hussein foi errônea.

"Os americanos acabaram fatiando a sociedade entre sunitas, xiitas e curdos, o que só aumenta a rivalidade entre os grupos. Só que os Estados Unidos têm a sua própria agenda de relações exteriores. Para eles, interessa que o Iraque fique enfraquecido nessa região estratégica, assim eles têm uma desculpa para manter tropas ali".

Sana também se lembra com horror quando o seu filho voltou ao Iraque em 2003 por alguns dias para participar de uma missão humanitária. "Naquele momento, a comunicação era muito difícil. Na primeira vez em que me ligou, estava todo agitado porque não teria muito tempo para falar. O telefone era emprestado e o custo da ligação, altíssimo. Ele perguntou: 'Mãe, só me diz uma coisa, rápido, somos xiitas ou sunitas?'".
Na hora, ela conta que sentiu um aperto no coração ao se dar conta de que os americanos estavam dividindo a população dessa maneira. "Ele tinha 29 anos e nunca havia precisado ser classificado. Respondi a ele: 'Diga que você não é uma coisa nem outra, diga que você é iraquiano'".