Topo

"Precisamos provar que somos humanos", diz ex-guerrilheira das Farc que será senadora

A ex-guerrilheira das Farc Sandra Ramírez - Twitter/ Sandra Ramirez
A ex-guerrilheira das Farc Sandra Ramírez Imagem: Twitter/ Sandra Ramirez

Bruno Aragaki

Colaboração para o UOL, em Bogotá

25/02/2018 04h00

Depois de 24 anos na selva colombiana e prestes a se tornar senadora no país, a ex-guerrilheira Sandra Ramírez relata dificuldades para se acostumar à vida "em sociedade". "Aqui, nos deparamos com um sistema egoísta. Sentimos falta do sentimento de coletividade que tínhamos (na guerrilha), e é isso que vamos trazer para o povo colombiano", disse em entrevista exclusiva para o UOL.

Em campanha pelo país, Ramírez é, ao mesmo tempo, candidata e já eleita. O acordo de paz firmado entre o governo do presidente Juan Manuel Santos e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) assegura ao grupo cinco cadeiras no Senado e cinco no Congresso.

Ainda assim, o nome do partido formado pelos ex-guerrilheiros (Força Alternativa Revolucionária do Comum, mantendo a sigla do grupo rebelde) constará das cédulas eleitorais em 11 de março. Caso os votos na legenda superem o equivalente aos dez assentos, a Farc terá direito a um número maior de representantes no legislativo colombiano. Caso contrário, serão empossados os líderes do partido – entre eles, Ramírez.

Leia também

Nascida Criselda Lobo, adotou o nome durante os tempos de guerrilha e foi "companheira sentimental", como define, de um dos fundadores da guerrilha -- Manuel "Tirofijo" Marulanda, que morreu de causas naturais em 2008. Agora, se prepara para assumir um assento no Congresso.

"Já sou senadora", disse, por Skype, de Boyacá, no interior do país, à reportagem do UOL, em Bogotá.

Na campanha, ela sente a rejeição de uma parte da população às Farc e sabe que seu grupo ainda terá de enfrentar por anos o legado de décadas de confronto armado. "O que queremos é a reconciliação", diz.

Como parte do acordo de paz, uma comissão formada por 51 magistrados colombianos e 14 juristas estrangeiros se debruça sobre denúncias de crimes cometidos não apenas pela guerrilha, mas também por membros do governo e pelas forças paramilitares. A chamada JEP (Jurisdição Especial para a Paz) deverá, nos próximos 15 anos, identificar culpados, vítimas e determinar penas para os responsáveis. 

Leia os principais trechos da conversa:

UOL – Como sua vida mudou depois de celebrado o acordo de paz?

Ramírez – A vida de todos nós (ex-combatentes) mudou muito. Na selva ou na montanha, nem todos os momentos eram de combate. Formamos amizades de irmãos, de companheiros de luta, movidos por um sentimento comum. Agora, ao regressar, nos deparamos com um mundo egoísta e sentimos falta da noção de coletividade que tínhamos. E é exatamente isso que queremos trazer para o povo colombiano.

UOL – Por que você acredita que a classe média das grandes cidades colombianas tem interesse nesse modelo de sociedade que vocês propõem?

Ramírez – Acabo de voltar de uma reunião com estudantes. E os jovens estão ávidos por saber como vivíamos, como nos organizávamos e como vamos mudar o país. As pessoas têm curiosidade, muitos vêm nos tocar para saber se somos de carne e osso.

UOL – Você acha que os colombianos têm curiosidade ou medo das Farc?

Ramírez – A mídia colombiana, junto com a máquina do Estado, criou um fantasma em torno de nós. Destruíram nossa imagem. Muitas vezes, precisamos provar que somos humanos, gente comum, com aspirações, frustrações e direitos políticos como qualquer outro cidadão.

UOL – A rejeição às Farc ainda parece ser grande no país, não?

Ramírez – Na verdade, agora em campanha, encontramos de tudo. Gente que nos admira, que nos respeita, e também que se recusa a falar comigo. Respeito. Mas vamos mudar isso dialogando, conversando e apresentando propostas de uma nova maneira de fazer política. Diria que a cada 100, 150 pessoas que encontro, apenas umas cinco ou seis não querem nos escutar.

UOL – Em 2016, quando houve o plebiscito para aprovar o acordo de paz, a maioria dos colombianos votou contra. Não seria indicador de uma rejeição maior?

Ramírez – No plebiscito, na verdade, o que ganhou não foi o "Não". Foi a abstenção. E isso tudo foi influenciado por uma campanha de desinformação e mentiras sobre os termos do acordo.

UOL – Influenciou também o peso dos evangélicos, que se incomodaram com a inclusão de temas como igualdade de gênero e proteção à comunidade LGBT...

Ramírez – Temos muitas coisas em comum com as igrejas. Olhe, as igrejas e nós temos o mesmo objetivo, que é a paz e a igualdade, como irmãos. Mas a Colômbia é justamente um dos países mais desiguais do mundo, o segundo mais desigual do continente.

UOL – Após o registro de assassinatos de ex-guerrilheiros e militantes, você tem medo pela sua vida?

Ramírez – Quando decidimos há mais de 50 anos assumir essa luta, sabíamos dos riscos que corríamos. E seguimos correndo. Mas agora é hora do governo colombiano cumprir com um dos pontos do acordo de paz que é prover segurança não só para nós, mas para todos os cidadãos.

UOL – E se o governo não cumprir e os ataques continuarem, vocês pensam em voltar a se defender com armas?

Ramírez – Assumimos um compromisso em abandonar as armas e vamos adiante com isso. Vamos seguir na luta social, mas com outras ferramentas. Porque a guerra deixa fraturas na sociedade colombiana. A guerra nos trouxe dor em diferentes aspectos: crise econômica, todo o orçamento que esse aparato militar exige. Não vamos retomar as armas. Não é o caminho daqui para frente.

UOL – Você se arrepende de algo?

Ramírez – Em absoluto, não. Se voltasse a nascer, voltaria a ser guerrilheira. E uma guerrilheira melhor.

UOL –  A Jurisdição Especial da Paz (JEP) poderá apontá-los como culpados de crimes. Como convencer alguém a votar em um candidato que está sob suspeição?

Ramírez – A JEP não é só para nós. Ou não é assim que estava no acordo. Ela é para a guerrilha, para o governo, para os altos cargos, para os paramilitares e para a classe política corrupta. Mas estão querendo julgar só um ator político do processo, e isso não é justiça. Este país tem 7 milhões de pessoas que tiveram que abandonar suas casas durante a guerra, milhares de mortos e desaparecidos. E acreditamos que 80% das vítimas são de responsabilidade dos grupos paramilitares.

UOL – E os outros 20%?

Ramírez – É claro que temos nossas responsabilidades! Foram 53 anos de conflito armado. Nós já reconhecemos nossos erros e pedimos desculpas por diversas falhas, como o atentado ao Clube El Nogal em Bogotá [que deixou 39 mortos, em 2003]. Nos colocamos frente a essas pessoas e pedimos perdão. E fazemos isso de coração, porque o que queremos é a reconciliação.

UOL – No Brasil, a imagem das Farc é associada, basicamente, ao narcotráfico. Vocês abandonaram essas atividades?

Ramírez – Essa é uma mentira! Nós nunca traficamos drogas. Precisávamos de recursos e o que fizemos foi cobrar imposto de todas as atividades que transcorriam nos territórios em que atuávamos – e isso incluía o cultivo de plantações. É algo totalmente diferente. Quem sustenta o negócio das drogas são máfias que continuam intocadas, com cadeias produtivas bem organizadas que levam droga do interior até o Caribe e de lá para Nova York. Agora, nós estamos cumprindo com o compromisso de não cobrar mais esses impostos. Ou seja, já não temos nada a ver com o assunto das drogas.

UOL – Para o Brasil, qual seria a vantagem de ter a Farc no governo colombiano?

Ramírez – O Brasil ganharia muito. O país esteve presente nas negociações de paz, somos países irmãos. Vamos construir relações internacionais soberanas e ao mesmo tempo solidárias. Nosso compromisso, no plano internacional, é não interferir nos assuntos internos de cada país.

UOL – Qual sua avaliação para o momento político do Brasil?

Ramírez – O Brasil, assim como a Colômbia, tem suas próprias questões sociais e seu sistema de justiça. O povo brasileiro e suas instituições saberão lidar com eles.