Marielle virou um "símbolo global", diz "The Washington Post"
A comoção em torno da morte da vereadora carioca Marielle Franco – assassinada a tiros na última quarta-feira (14) - extrapolou as fronteiras brasileiras e fez dela um “símbolo global”. A afirmação está no título de uma reportagem que estampa a capa do jornal americano “Washington Post” em sua edição impressa desta terça-feira (20).
“Antes de entrar em seu carro, às 9h04 na última quarta-feira (14), Marielle Franco terminava o que melhor sabia fazer: incendiava um salão. ‘Vamos conseguir!’, disse a vereadora carioca de 34 anos em um discurso inflamado na Casa das Mulheres Negras do Rio. Ela falava sobre o empoderamento negro”, escreveu o jornal.
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O Brasil precisava dela, conta o diário. "A brutalidade policial e as execuções extrajudiciais estavam devastando as favelas da cidade, uma metrópole tão problemática. Em uma sociedade que há muito se via como pós-racial, argumentou Marielle, a matança não era apenas uma guerra contra os pobres. Era também uma guerra contra os negros.”
Trinta minutos depois da reunião, dois veículos se aproximaram de seu carro branco. Então, nove balas de uso exclusivo da polícia a alvejaram, incluindo quatro tiros na cabeça.
Mas se a intenção era silenciar um político negro que se elevou rapidamente e denunciou policiais corruptos, o assassinato de Marielle resultou no contrário, crava o jornal. “Nos últimos dias, a maior nação da América Latina observou com admiração como uma figura pouco conhecida fora do Rio se transformou em símbolo global da opressão racial.”
O diário lembra que a vereadora foi homenageada no Parlamento Europeu e que “multidões” protestaram contra seu assassinato e celebraram sua vida nas ruas de Nova York, Londres, Paris, Munique, Estocolmo e Lisboa. “Uma vigília será realizada em Madri nesta terça-feira.”
O slogan "Marielle Presente" conquistou milhões de menções no Twitter e no Facebook, conta o diário. De Berlim a Miami a Montreal, pessoas que nunca ouviram falar de Marielle antes da semana passada se unem ao movimento Black Lives Matter e compartilham a hashtag #SayHerName (#DigaONomeDela).
"ERGA-SE, BRASIL!", tuitou a modelo britânica Naomi Campbell.
Mas da fronteira brasileira para dentro, sua morte é vista de maneira divergente, ressaltando as divisões raciais que muitos brasileiros afirmam não existir. Seus assassinos não foram pegos. Mas o escritório do Ministério Público Federal no Rio diz que a evidência, incluindo o assassinato altamente profissional, aponta para a ação de policiais corruptos. As balas, dizem as autoridades, vieram dos estoques policiais. Um representante da polícia civil não comenta nada. Diz apenas que a investigação está em andamento.
"Seu derramamento de sangue não pode ser usado como um momento oportuno para falar sobre ódio", disse Ana Amélia, senadora carioca, que é branca. "Quando você fala sobre uma divisão preto-branco, você está contribuindo para essa divisão."
Segundo o jornal, alguns ativistas negros e de esquerda afirmam que esse tipo de declaração é parte do problema: um sistema de crenças que finge que a raça não está relacionada com a violência desproporcional sofrida pelos brasileiros negros.
Mal pagos e sob pressão, continua o “Washington Post”, a polícia também está sob ameaça: pelo menos 120 policiais foram mortos em 2017, incluindo muitos em confrontos com traficantes de drogas, de acordo com o Instituto Igarapé. “Mas, no ano passado, 1.124 pessoas morreram nas mãos da polícia, o maior número em uma década, informa o instituto. Nos últimos anos, quase 80% dos mortos pela polícia eram negros ou mestiços.”
Políticos homens e brancos também tentam levar policiais corruptos à justiça. Mas Marielle foi alvo, insistem seus defensores, porque tirar a vida de uma mulher negra é menos arriscado no Brasil, especialmente em um Estado onde apenas um em cada dez casos de homicídio termina em prisão.
Como uma lésbica negra de esquerda, Marielle representou o encontro de movimentos. Dezenas de milhares de brasileiros de todas as cores tomaram as ruas no rescaldo de sua morte.
Alguns esperam que a matança marcará um ponto de virada para o ativismo negro; “um conceito que tem lutado para decolar no Brasil”, escreve o jornal. A indignação também traz mais engajamento político do que os brasileiros estão acostumados, incluindo uma enxurrada de tuítes sob a hashtag #genocidionegro.
"Uma mulher negra foi morta por que estava exigindo direitos ", disse ao diário Rubia Augusta Gomes, uma dançarina afro-brasileira de 38 anos que no domingo (18) se juntou a milhares em uma marcha contra a violência na favela da Maré, onde Marielle nasceu e cresceu.
"É hora de falar", diz Rubia. "É hora de falar sobre raça, porque somos os que sofremos.” Até agora, alguns dos protestos em nome de Marielle falam estritamente sobre raça. Uma enfermeira afro-brasileira de 25 anos protestava no centro do Rio dizendo que desejava um movimento maior e mais politizado. Algumas centenas de pessoas, incluindo ativistas de esquerda e homossexuais, estavam na marcha.
A enfermeira recusou-se a dar seu nome dela, citando o medo de retaliação policial. "Por que estou com medo?", questionou. "Porque eu sou uma mulher negra, e minha vida não vale nada aqui."
De acordo com o “Washington Post”, “o racismo no Brasil tem uma história complexa”. O país importou 4 milhões de escravos, mais de 10 vezes o número trazido para os Estados Unidos, onde o tráfico negreiro foi desencorajado. “Mas no Brasil, onde os colonos portugueses foram superados em número por seus escravos, a ordem era ‘branquear’ a população.”
A miscigenação logo se tornou uma pedra angular da identidade nacional, com 53% dos brasileiros se enxergando como negros ou mestiços. "No Brasil, as pessoas se opõem a essa narrativa de mistura racial e dizem que o conceito de identidade cultural negra ou branca é uma importação americana", afirmou Glen Goodman, professor de estudos brasileiros na Universidade de Illinois.
O diário lembra que os críticos dizem que o mito de um Brasil pós-racial silencia a reflexão sobre a discriminação e violência “profundamente arraigadas”. “Os números falam por si”: todos os dias, 112 negros ou pardos são mortos, de acordo com o Instituto Igarapé. Eles representam 53% da população, mas 71% de todos os homicídios. “Entre 2005 e 2015, a proporção de negros e brasileiros pardos mortos aumentou 18%, enquanto o número de brancos que perderam a vida de forma violenta caiu 12%.”
“Marielle era uma raridade na política brasileira: uma mulher negra poderosa.” O jornal contou também um pouco sobre a juventude da vereadora, na Maré. “Ela estudou à noite para conseguiu seu diploma do ensino médio. Em seguida, ganhou uma bolsa de estudos completa para a PUC do Rio, onde ela era uma das duas mulheres negras estudando sociologia.”
Sua vida política começou em 2006, depois que um amigo próximo morreu atingido por uma bala perdida em um tiroteio entre policiais e traficantes. Em uma esfera dominada por homens brancos, ela era a única mulher afrodescendente no Conselho Municipal do Rio.
Em 2008, ela passou a integrar um comitê de investigação que estudava as milícias do Rio constituídas por antigos policiais e agentes de segurança privados que extorquiam os moradores para dar acesso a gás, TV a cabo e transporte. O comitê descobriu que 118 milícias operavam na cidade. Ao todo, 226 pessoas acabaram indiciadas, incluindo 67 policiais.
Marielle também foi uma crítica feroz do 41º Batalhão de Polícia Militar do Rio, conhecido como "a brigada da morte" pelo assassinato de jovens negros.
O jornal concluiu dizendo que, no dia anterior ao crime, a vereadora lamentou a morte de Matheus Melo, um jovem morador negro de uma favela que foi baleado enquanto saía de uma igreja com sua namorada. “Era apenas a vítima mais recente de um conflito entre narcotraficantes, milícias e policiais no Estado do Rio.”
"Quantas pessoas mais precisam morrer antes que esta guerra termine?", tuitou Marielle, pouco antes de morrer e se tornar um símbolo mundial contra o preconceito.
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