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Opção por não negociar com EUA une oposição, militares e religiosos no Irã

Outdoor mostra o líder iraniano Ali Khamenei pisando na bandeira do Estados Unidos - Marcel Vincenti/UOL
Outdoor mostra o líder iraniano Ali Khamenei pisando na bandeira do Estados Unidos Imagem: Marcel Vincenti/UOL

Renato Machado

Colaboração para o UOL, em Teerã

28/06/2019 04h00

Os iranianos acordaram na sexta-feira da semana passada --um dia religioso e considerado de descanso, como os domingos do mundo ocidental-- com a notícia de que um ataque aéreo contra seu país esteve prestes a ser executado pela maior potência militar do mundo.

Na última hora, o presidente norte-americano, Donald Trump, suspendeu a ação, mas o episódio serviu para elevar a tensão entre as duas nações.

Só que nem o receio de serem atacadas parece abalar a disposição das autoridades iranianas de não abrir novo diálogo com os Estados Unidos. Mais do que isso: essa posição é compartilhada por praticamente toda a sociedade local, dos militares aos poderosos clérigos religiosos, da oposição política à população em geral.

A posição ficou mais evidente depois da visita recente do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe. O Japão parecia ser o emissário ideal para negociar uma reconciliação, pois é aliado dos norte-americanos, ao mesmo tempo que sua economia depende desesperadamente do petróleo que transita no Golfo Pérsico --é uma das grandes economias a sentir os impactos das sanções entre Washington e Teerã.

Abe e Khamenei - Divulgação/site do líder supremo/AFP - Divulgação/site do líder supremo/AFP
O aiatolá Ali Khamenei em encontro com o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe
Imagem: Divulgação/site do líder supremo/AFP

Abe se encontrou com a mais alta autoridade iraniana, o aiatolá Ali Khamenei, de quem ouviu que o Irã se recusa a voltar à mesa de negociação. No fim, ainda foi surpreendido com a divulgação de um trecho do encontro pela televisão estatal --ação pouco comum em audiências de autoridades internacionais-- no qual o anfitrião recusa oferta de diálogo:

"Não temos dúvidas da sua boa vontade e seriedade, mas, em relação ao que você falou sobre o que o presidente dos Estados Unidos te disse, eu não considero Trump uma pessoa com quem valha a pena trocar mensagens", afirmou na gravação.

Seu gabinete em seguida divulgou mais conteúdo da conversa, onde Khamenei afirma que o Irã "não tem confiança nos Estados Unidos e não irá repetir a amarga experiência das negociações anteriores" com o governo de Barack Obama.

Longe de representar um regime isolado politicamente dentro de seu próprio país, a declaração do líder supremo reflete a posição de grande parte da população iraniana, desiludida com a retirada dos Estados Unidos do acordo nuclear.

Tão importante quantos os efeitos econômicos das sanções --como a forte queda do PIB, a alta da inflação e o aumento do desemprego--, o sentimento de que foram "enganados" pelos americanos atinge a população local. Por isso, o discurso anti-Estados Unidos e antinegociação une os mais diversos segmentos da sociedade, incluindo grupos rivais

"O Irã nunca vai concordar em negociar sob pressão", disse ao UOL o analista político iraniano Mostafá Khoshcheshm.

Manifestações - Getty Images - Getty Images
Manifestações contra os EUA no Irã após sanções
Imagem: Getty Images

Ele completa que não se trata apenas de Trump, tendo em vista que líderes no passado também usaram a estratégia da "máxima pressão" para trazer o Irã para a mesa de negociação. No entanto, depois de um passo rumo ao apaziguamento, o ambiente político nos Estados Unidos muda e o país do Oriente Médio volta a ser alvo.

"Os iranianos sabem e aprenderam que se render não encerra esse ciclo. A única coisa boa em Trump é que ele deixou clara a natureza dos Estados Unidos em relação ao Irã, mostrou que a situação pode nunca se resolver."

Khoshcheshm acredita que os próximos dias e meses serão difíceis para os iranianos, com o aumento da pressão militar dos Estados Unidos e, talvez, com a reimposição de sanções pela União Europeia.

Isso porque o Irã, segundo o analista, tende a contrapor a falta de ações concretas dos europeus para impedir que o país sofra com as sanções americanas com novos anúncios referentes ao aumento de suas atividades nucleares. "É um dos poucos passos que o Irã pode tomar", completa, reconhecendo que a consequência disso pode ser jogar a União Europeia contra seu país.

O governo do presidente Hassan Rouhani indicou desde o início que afastava a possibilidade de negociação, porque o Irã vinha cumprindo seus compromissos no acordo nuclear e a decisão dos Estados Unidos de se retirar do acordo havia sido unilateral, desrespeitando o texto firmado e resoluções da ONU (Organização das Nações Unidas).

Recentemente, figuras importantes dos diversos segmentos políticos e da sociedade declararam abertamente sua posição antidiálogo. Alguns especialistas duvidam, contudo, que essas declarações configurem apoio político a Rouhani.

Muito pelo contrário: se trata de pressionar seu governo. "Essas declarações recentes servem para dois propósitos. Primeiro para mostrar à comunidade internacional que existe unidade por trás dessa posição contra o diálogo com os americanos. Mas também servem para dizer ao governo local que 'essa é a posição de todos, portanto não contrarie'", afirma um professor da Universidade de Teerã, que pediu para não ser identificado por temer represálias.

Logo após o vídeo e o comunicado do líder Khamenei, outras figuras importantes se manifestaram contra um novo diálogo com os EUA.

O caso mais notório foi o do Grão Aiatolá Nasser Makarem Shirazi, que declarou que aceitar novas rodadas de negociação com os americanos não seria um passo "inteligente" e que as sanções econômicas visam apenas trazer de volta o Irã para a mesa de negociação, o que é "uma ilusão".

Os militares, por sua vez, até então se abstinham de discutir estratégias políticas em público, optando por declarações de dissuasão, ressaltando o poder bélico iraniano e ameaçando os Estados Unidos.

Na semana passada, no entanto, o comandante da Guarda Revolucionária, general Hossein Salami, afirmou que o objetivo dos americanos ao ludibriar o Irã para aceitar negociar era desmantelar o poder militar e de defesa iraniano. "Existe guerra, perda de poder e rendição por trás da lógica da negociação", afirmou.

Mais impactantes foram declarações de pessoas ligadas ao movimento reformista iraniano. "Ainda que tenha minhas críticas à política exterior iraniana, os EUA não tinham o direito de abandonar o acordo e nos impor as piores sanções, que configuram terrorismo econômico... Dialogar nessas condições não faz sentido", disse o jornalista e analista político Abbas Abdi, considerado uma das vozes mais influentes da ala reformista.

A população iraniana, de uma maneira geral, se divide entre os que tradicionalmente abominam os Estados Unidos --e portanto sempre foram contra uma aproximação-- e aqueles que viam no fim das hostilidades entre os dois países a chave para a melhoria na qualidade de vida no Irã.

Mulheres iranianas assistem ao jogo entre Irã e Bolívia no estádio - Vahid Salemi - Vahid Salemi
Mulheres iranianas assistem ao jogo entre Irã e Bolívia no estádio; prática é condenada pelos conservadores no país
Imagem: Vahid Salemi

Esses últimos se mostram decepcionados, principalmente pelo curto período sem sanções, em que seu país vislumbrou um desenvolvimento econômico e as pessoas tiveram acesso a bens mais modernos --desde carros europeus a eletrônicos de última geração, alimentos importados e roupas das principais grifes mundiais.

Claro que muitos desses produtos continuam a circular no país, mas a importação pelo mercado negro os encarece e os torna inacessíveis para a maioria das pessoas.

"Eu achava que acabar com esse clima ruim com os Estados Unidos era a solução para desenvolver nosso país e para melhorar a vida dos iranianos. Mas o Trump mostrou que não devemos confiar", afirma a estudante universitária Fahime, que, como a maioria das pessoas entrevistadas pela reportagem nas ruas, pede para não ser completamente identificada.

Ela diz que a tensão vai durar ainda longos meses, quem sabe anos, embora ache que os países não vão chegar a entrar em guerra. "Apesar de decepcionada, ainda acho que essas ações não representam os Estados Unidos como um todo. É apenas o Trump e seus assessores, que devem perder a próxima eleição e ir embora. Inshalah", completa, com uma expressão misto de esperança e desejo.

Onda conservadora

Internamente, a sociedade local iraniana presencia o avanço de uma onda conservadora. Uma série de fatos recentes aponta para um combate ao avanço de hábitos "ocidentais" e para a defesa da tradição religiosa muçulmana.

Esses fatos envolvem desde violência física contra os "transgressores" até decisões, consideradas retrógradas, do poder público e do Judiciário.

O caso de maior destaque na mídia iraniana envolveu o aplicativo Snapp (espécie de Uber iraniano). Um motorista do aplicativo, Saeed Abed, obrigou a passageira a deixar o veículo, no meio de uma via expressa de Teerã, porque ela se recusou a usar o véu islâmico.

Depois de um post da passageira, muitos clamaram um boicote à empresa. O Snapp se desculpou com a passageira e prometeu repreender o motorista, fato que provocou uma reação contrária muito mais forte. O motorista tornou-se uma espécie de "herói" para a população mais conservadora.

Mulheres queimam véu islâmico - Reprodução/TV UOL - Reprodução/TV UOL
Mulheres queimam véu islâmico em protesto
Imagem: Reprodução/TV UOL

Outra decisão envolvendo o véu desagradou mulheres e entidades de direitos humanos. Um procurador anunciou que cortes especiais vão ser criadas para julgar rapidamente casos de mulheres que desrespeitam o "dress code" islâmico. Desde o ano passado, em uma série de protestos, mulheres tiraram o véu em público. Muitas delas foram detidas pela polícia e condenadas à prisão.

A tendência de flexibilização de comportamentos sociais está aos poucos sendo revertida.

A polícia de Teerã já fechou mais de 500 restaurantes e cafés na capital, principalmente na região norte, considerada mais liberal e ocidentalizada.

Embora não tenha nenhuma conotação negativa específica na sociedade iraniana, os cafés costumam ser lugares onde jovens se encontram para conversar, fumar narguilé e paquerar (sem se tocarem, obviamente).