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Crise interna blinda voto de argentinos contra falas polêmicas de Bolsonaro

Jair Bolsonaro e Mauricio Macri durante a Cúpula do Mercosul, em Santa Fé (Argentina) - Presidência argentina
Jair Bolsonaro e Mauricio Macri durante a Cúpula do Mercosul, em Santa Fé (Argentina) Imagem: Presidência argentina

Luciana Taddeo

Colaboração para o UOL, em Buenos Aires

23/08/2019 04h00

Após as eleições primárias da Argentina evidenciarem a vantagem de 15 pontos porcentuais do candidato peronista Alberto Fernández sobre o presidente argentino, Mauricio Macri, Jair Bolsonaro (PSL) endureceu o discurso relacionado à corrida presidencial do país vizinho.

O presidente brasileiro falou sobre a volta de "bandidos de esquerda" ao poder, insinuou que poderia haver uma invasão argentina no Rio Grande do Sul se a "esquerdalha" vencer --em referência a Fernández, cabeça da chapa que tem Cristina Kirchner como vice-- e disse que, se a Argentina "criar problema", o Brasil sairá do Mercosul.

Apesar de o Brasil ser o principal sócio comercial da Argentina, analistas do país consultados pelo UOL afirmam que as declarações de Bolsonaro não influem no voto dos eleitores.

"Estamos muito distraídos com a crise interna. A situação não está fácil aqui, e os argentinos estão mais atentos ao preço do dólar e às declarações do presidente [Macri]", explica Julio Burdman, cientista político e professor da Universidade de Buenos Aires, apontando que as declarações não tiveram tanta repercussão no país.

Federico González, diretor de uma consultoria de comunicação política e opinião pública, concorda que as falas chegaram a um público reduzido. Mas, segundo ele, mesmo se tivessem maior repercussão, não influenciariam a eleição, que segundo ele está "blindada". O voto está sendo motivado apenas por questões internas.

Ele cita como exemplo pesquisa recém-realizada por sua empresa sobre fatores determinantes do resultado eleitoral: 70% disseram que fatores econômicos, como inflação (que em julho acumulou 54,4% anuais) e emprego, pesaram na decisão.

O que importa é se há crise econômica ou não
Federico González, diretor de consultoria

Aspectos como obras públicas e valores institucionais --como transparência e ser contra a corrupção-- obtiveram 15% cada um.

Para o cientista político, chefe de Internacional do jornal argentino Ámbito Financiero e editor do site Letra P, Marcelo Falak, os eleitores "não se interessam por aquilo que Bolsonaro diz". "Não tem nenhuma influência no eleitorado argentino. Se tiver, é mínima e marginal. O que o presidente de outro país diz não define o voto, nem mesmo de um país tão próximo como o Brasil", diz.

Segundo ele, embora as falas de Bolsonaro possam ratificar posições de kirchneristas e de eleitores de Macri contra ou a favor do presidente, o definidor é "o enorme eleitorado que está no meio", cujo voto é motivado pela situação econômica.

Nem Trump mexe na eleição

As declarações de Bolsonaro não são relevantes para o grosso da opinião pública, segundo opinião de Rosendo Fraga, analista político que dirige o Centro de Estudos Nueva Mayoría.

"Uma minoria se preocupa com essa tensão porque percebe como um problema no futuro, dada a importância da relação entre a Argentina e o Brasil, mas ninguém muda o voto por isso."

Fraga cita como exemplo o apoio aberto de Donald Trump a Macri antes das primárias: "Nunca na história um presidente dos Estados Unidos se envolveu tanto em uma eleição argentina. Mas não influiu, não teve debate sobre isso nem a oposição tentou usar isso contra o Macri, apesar de Trump ser muito impopular na Argentina --assim como no resto do mundo".

Ricardo Rouvier, sociólogo argentino e consultor especialista em pesquisa de opinião pública, ressalta que Bolsonaro não é visto com simpatia pelos argentinos, por parecer uma figura "anacrônica, que não expressa a modernidade".

Para ele, o presidente brasileiro "é muito extemporâneo, exagerado em suas maneiras, quase diria grosseiro e provocativo demais". Ele diz que a classe média argentina não valoriza essas características: "Não o vejo como [uma figura] popular na Argentina", avalia.

Rouvier diz que o líder brasileiro poderia prejudicar seu par argentino se der mais passos em solidariedade ao Macri. "Acho que o Macri tem que pedir que o Bolsonaro não fale dele, que não o mencione, porque não lhe dá votos", diz.

Como consultor, se me perguntassem se Macri deveria tirar uma foto com Bolsonaro, diria para não tirar
Ricardo Rouvier, sociólogo argentino

González aponta o contraste como um paradoxo. Segundo ele, apoiadores de Macri, com ideologia de direita e antipopulista, valorizam um modo mais pacífico de se expressar e não gostam desse estilo.

"As expressões do Bolsonaro, apesar do que ele representa, são mais parecidas às dos populistas na Argentina, mais do estilo de Cristina Kirchner, ditas de forma meio beligerantes e com violência discursiva", analisa.

Segundo ele, em geral os argentinos não têm uma fibra nacionalista, mas, se notícia tivesse mais repercussão no país, "prevaleceria mais uma rejeição à ingerência de outro país sobre a Argentina do que o que ele disser". Poderia, inclusive, começar a semear uma relação de inimizade com o Brasil, o que atualmente não existe. "Acho que as declarações não acrescentam", diz.

Falak afirma que, mesmo "o fantasma da Venezuela", levantado por Macri durante a campanha, não foi ouvido pelo eleitorado. Muito menos se isso vier de uma fala de Bolsonaro.

Ele inclusive qualifica a hipótese sobre os refugiados de "absurda" e considera "uma tentativa de intervir de uma maneira muito agressiva em um processo eleitoral que já é bastante difícil para a Argentina". Para ele, não ajuda que com a turbulência nos mercados, um presidente fale como se a Argentina "fosse um país à beira da dissolução".

Burdman, por sua vez, diz que os apoios de Trump e de Bolsonaro a Macri são "incômodos". Mas lembra que também houve críticas a Fernández por ter respondido para Bolsonaro. Segundo ele, assessores recomendaram a Fernández que não respondesse mais às declarações de Bolsonaro.

Fernández chamou Bolsonaro de violento, racista e misógino e disse que o presidente brasileiro celebrou a tortura a Dilma Rousseff.

Em entrevista ao jornal Página 12 no último domingo, o peronista disse que errou ao se envolver nas "provocações" de Bolsonaro: "Meio que me arrependi de ter entrado no jogo dele".

Se Bolsonaro quiser dançar esse tango, que não conte comigo
Alberto Fernández, candidato argentino à Presidência opositor a Macri

Apesar das diferenças ideológicas, disse ainda que vai ajudar a aprofundar os vínculos entre o Brasil e a Argentina.

Burdman lembra que desde os anos 1980, com o retorno da democracia, "todos os presidentes tiveram relações excelentes, pelo menos no nível político". Ele diz que a "relação interdependente" dos países devido a acordos comerciais e a integração automotiva, por exemplo, não deve mudar, mas prevê pouca solidariedade e cooperação.

Falak considera que pode haver retificações e que a relação não depende dos presidentes gostarem um do outro. "Não vejo necessariamente um problema para o futuro das relações, a não ser que os atores escolham esse caminho."