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Guerra ao Terror deixa legado de democracias fragilizadas no mundo todo

As Forças Armadas britânicas trabalham com os militares americanos para evacuar civis para fora do Afeganistão - Getty Images
As Forças Armadas britânicas trabalham com os militares americanos para evacuar civis para fora do Afeganistão Imagem: Getty Images

Carolina Marins e Lucas Borges Teixeira

Do UOL, em São Paulo

11/09/2021 04h00

Em 2001, os Estados Unidos declararam guerra contra o terrorismo e invadiram países no Oriente Médio com a justificativa de acabar com o radicalismo e levar democracia. Vinte anos depois, o último soldado americano saiu do Afeganistão deixando um vácuo de poder, mais células terroristas e democracias mais fragilizadas do que antes, incluindo a norte-americana.

Os atentados de 11 de Setembro mudaram radicalmente a política externa americana, transformando o Oriente Médio e o contraterrorismo em uma peça central. Mas, com os ataques, também vieram justificativas falsas para invadir países, espionar cidadãos e até mesmo torturar inimigos. O saldo deve ser sentido por muitos anos ainda.

"Não consigo pensar em nenhum ponto positivo da chamada Guerra ao Terror", afirma Karabekir Akkoyunlu, professor de Desenvolvimento Internacional e Política do Oriente Médio da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Causou uma enorme polarização, sofrimento humano, não fez os EUA mais seguros, definitivamente fez serem mais odiados ao redor do mundo, criou um efeito ricochete e causou a piora da democracia americana.
Karabekir Akkoyunlu, professor da FGV

Logo após os ataques, o então presidente George W. Bush assinou o chamado "Ato Patriota", que permitia ao governo interceptar ligações e mensagens de pessoas suspeitas de envolvimento com terrorismo sem necessitar de autorização da Justiça.

Ele foi primeiramente aprovado como medida emergencial e se tornou uma lei permanente no país. "Foi um fator crucial em termos de limitação das liberdades individuais nos EUA também", acrescenta Akkoyunlu.

Essa rede de vigilância, porém, não se limitou aos cidadãos americanos e atingiu diversos países, inclusive aliados dos Estados Unidos. Em 2013, o WikiLeaks revelou a enorme rede de espionagem americana, que causou rusgas diplomáticas até com o Brasil durante o governo de Dilma Rousseff —a presidente também foi espionada.

"Toda a rede de segurança interna criada pelo Bush —e que o Obama seguiu— é de desrespeito à privacidade", explica Maurício Fronzaglia, professor de ciência política na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Quando foi descoberta, Obama pediu desculpas, mas não disse que ia parar."

Essa rede de vigilância ainda existe. Talvez tenha evitado atentados, mas por outro lado o preço é a vigilância constante da vida dos cidadãos.
Maurício Fronzaglia, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Modelo para o mundo

Além de espionar cidadãos e países, a Guerra ao Terror abriu brechas para que outras nações utilizassem as mesmas táticas de forma conveniente. Bush é criticado por ter declarado uma guerra abstrata ao utilizar o termo "terror", em vez de apontar um inimigo real —que deveria ser a Al-Qaeda, segundo os setores de inteligência da época.

Os EUA ensinaram como usar termos genéricos que abrem margem para escolher os inimigos, conforme desejar. No caso americano, o termo justificou o ataque a Saddam Hussein no Iraque, por exemplo, mas todos os anos novos nomes são adicionados à lista de "terroristas" do país.

A "guerra às drogas" muito popular em países como Filipinas e Brasil importa o mesmo tipo de lógica. "Todas essas grandes guerras abstratas tiveram o mesmo discurso na época, semelhante ao da Guerra ao Terror", explica Akkoyunlu. "O que elas significam? É muito ambíguo e você pode colocar um monte de atores não relacionados na mesma categoria."

A própria lei 13.260/2016, chamada de "Lei Antiterrorismo", no Brasil possui inspiração nas denominações de terrorismo americano. A legislação foi muito criticada na época por ser muito vaga e abrangente. A ONU (Organização das Nações Unidas) classificou as definições da lei como "demasiado vagas e imprecisas, o que não é compatível com a perspectiva das normas internacionais de direitos humanos".

Os EUA têm influência no mundo, o que acontece lá é copiado, especialmente porque, quando eles fazem, dá uma certa legitimidade para os outros países fazerem também.
Karabekir Akkoyunlu, professor da FGV

O professor cita como exemplo a Turquia, que também se inspira nas invasões americanas no Oriente Médio para justificar suas incursões no Iraque e na Síria.

Além disso, a Guerra ao Terror produziu uma série de desrespeitos às legislações internacionais. Quando invadiram o Iraque, os EUA não possuíam respaldo da ONU, desmoralizando a agência.

"Os EUA minaram o sistema internacional que eles deveriam defender. Ignoraram a ONU na guerra ao Iraque, fizeram extradições ilegais, colocaram pessoas nas prisões e torturaram em diferentes países", pontua Akkoyunlu.

Minar a democracia, as liberdades civis e a legitimidade internacional, esse é o legado da Guerra ao Terror.
Karabekir Akkoyunlu, professor da FGV

Não é o fim das 'guerras infinitas'

A principal justificativa dos EUA para a invasão do Afeganistão e do Iraque foi acabar com o terrorismo. Hoje, porém, pesquisas apontam que há mais células terroristas do que antes, espalhadas não apenas no Oriente Médio, mas também na África Subsaariana.

Segundo o Índice de Terrorismo Global de 2020, último disponível, as mortes por atentados caíram 59% em países como Iraque, Síria e Nigéria. Porém, o Talibã continuava sendo o grupo terrorista mais mortal e forte, apesar das investidas americanas.

Por outro lado, as ações de contraterrorismo mataram quase 1 milhão de pessoas, entre soldados, civis, jornalistas e voluntários em países como Afeganistão, Paquistão, Iraque, Síria e Iêmen, segundo o relatório "Custos da Guerra", produzido pela Brown University.

Com cada vez menos apoio popular, os EUA começaram em 2011 o processo de retirada das suas tropas do Iraque. O efeito, porém, de anos de ocupação não foi a construção de uma democracia e o fim do terrorismo. Na realidade, a guerra abriu margem para o nascimento do autointitulado Estado Islâmico, um braço ainda mais radical da Al-Qaeda.

Anos depois, o país repete o mesmo roteiro no Afeganistão, onde o Talibã já retomou seu espaço sem maiores problemas e a sombra da Al-Qaeda retorna à região.

A Al-Qaeda tem menos poder, mas outros grupos surgiram. O solo fértil continua existindo. O EI não existia no 11/9, mas eles são responsáveis pela disseminação dos métodos mais simples de terrorismo, do lobo solitário.
Maurício Fronzaglia, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Além de abrir portas para novas células terroristas, a saída sem planejamento também abre margem para que outros poderes disputem espaço na região, em especial China e Rússia.

"[Essa saída] cria uma dinâmica multipolar no Oriente Médio", explica Akkoyunlu. "Por exemplo, a Turquia se torna um ator proeminente, Arábia Saudita e Irã também, a China está se tornando um ator proeminente e Rússia também."

A saída de um poder imperial traz seus próprios problemas porque cria um tipo de vácuo e instabilidade. Esse é o Oriente Médio, eles têm suas próprias agitações e a saída dos EUA não fará automaticamente aquele lugar mais estável.
Karabekir Akkoyunlu, professor da FGV