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Guerra da Rússia-Ucrânia

Notícias do conflito entre Rússia e Ucrânia


'Todos os vizinhos correm risco': escritora alerta sobre fronteira russa

A antropóloga Erika Fatland no vilarejo de Grense Jakobselv, localizado na fronteira entre a Noruega e a Rússia - Arquivo Pessoal/Erika Fatland
A antropóloga Erika Fatland no vilarejo de Grense Jakobselv, localizado na fronteira entre a Noruega e a Rússia Imagem: Arquivo Pessoal/Erika Fatland

Juliana Arreguy

Do UOL, em São Paulo

21/03/2022 04h00

Quatorze países fazem fronteira com a Rússia. São locais diferentes, mas que na visão da antropóloga norueguesa Erika Fatland compartilham o mesmo sentimento: o receio de uma invasão. Treze deles já foram invadidos pelos russos em algum momento da história, fruto de uma mentalidade que tem sido utilizada para justificar os ataques à Ucrânia.

"Para entender a Rússia, é necessário entender que muitos russos e até o Putin ainda enxergam a Rússia como um império", diz a escritora em entrevista ao UOL.

Fatland é autora do livro The Border (A Fronteira, em português, que será publicado no Brasil este ano pela editora Âyiné), onde relata suas impressões sobre viagens a cada um dos 14 países que integram a fronteira com a Rússia: Noruega, Finlândia, Estônia, Letônia, Belarus, Lituânia, Polônia, Ucrânia, Geórgia, Azerbaijão, Cazaquistão, China, Mongólia e Coreia do Norte.

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No livro, ela observa que "é perigoso ser vizinho da Rússia". Entre eles, apenas a Noruega, onde nasceu, nunca foi invadida pelos russos. Fatland atribui isso ao fato de que a fronteira fica mais ao norte, num local "historicamente remoto e de difícil alcance". Mas também afirma que isso pode ser fruto de "pura sorte".

"Tudo é possível, especialmente na Rússia"
Erika Fatland, autora de The Border e Sovietistão

A visita a cidades e vilarejos na fronteira lhe rendeu uma compreensão da relação que possuem com a Rússia, e o que a derrocada da União Soviética significou para esses locais. Seu alerta é de que se trata de um mundo muito vasto, sem a possibilidade de generalizações. "Na Estônia as coisas ocorrem de um jeito diferente do Cazaquistão", afirma.

A Rússia nunca teve colônias como a França, o Reino Unido ou Portugal, explica a escritora. Por isso, acrescenta, sua forma de aumentar o império sempre foi por meio da expansão territorial.

"Acredito que Putin sonha em reconstituir ao máximo a União Soviética. Todos os vizinhos da Rússia estão em risco, especialmente aqueles que Putin vê como desobedientes, porque o Kremlin nunca deixou de ver antigas repúblicas soviéticas como parte do quintal russo."

Países visitados por autorade "Sovietistão" e "The Border" - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

'Guerra antiga'

Um dos exemplos de desobediência ao Kremlin é a aproximação da Ucrânia com a União Europeia e o aceno positivo ao avanço da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), sob liderança dos Estados Unidos.

Mas a invasão, na visão de Fatland, foi consequência de um processo que teve início em 2014, quando o presidente russo Vladimir Putin anexou a Crimeia.

A guerra está ocorrendo ali há oito anos, mas só agora é que estão enxergando o quão terrível ela é."

Para a autora, foi naquele momento que o líder "mostrou sua verdadeira face": "Putin não mudou de personalidade de repente. Ele sempre foi um governante cruel e nunca se importou muito com as vidas dos civis, nem mesmo dos próprios civis russos".

Como exemplo, ela recorre a acontecimentos do início do governo Putin, quando, em 1999, houve uma série de explosões em prédios residenciais de Moscou que matou mais de 300 pessoas. Ele havia acabado de ser nomeado presidente interino da Rússia por Boris Yeltsin.

Os ataques foram atribuídos a militantes da Chechênia, uma república na região do Cáucaso, próxima da fronteira com a Geórgia, que reivindicava independência em relação à Rússia. Isso serviu de justificativa para que o governo russo, sob comando de Putin, invadisse a região.

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Ataque a prédio residencial de Volgodonsk, distrito de Moscou, em setembro de 1999
Imagem: Reprodução/Creative Commons

No entanto, grupos armados chechenos negaram a autoria dos atentados. Investigações independentes apontavam indícios de que as explosões foram provocadas pela Rússia com o pretexto de retomar o território da Chechênia.

O momento em que foi deflagrado o conflito foi apontado como oportuno. A resposta às invasões, diz Fatland, veio nas urnas: meses depois, Putin foi eleito presidente ainda no primeiro turno.

"A guerra contra a Chechênia também não foi chamada de guerra, mas sim de 'operação especial', o mesmo termo que ele usa hoje para se referir à invasão à Ucrânia", afirma.

Na mira

Erika Fatland enxerga três países na mira da Rússia como locais a serem anexados: Belarus, Geórgia e Cazaquistão.

O caso de Belarus é o mais grave na visão da autora. "Eles não têm muito para onde correr, principalmente porque Lukashenko faz praticamente tudo o que Putin quer que ele faça", afirma.

O presidente Alexander Lukashenko é um dos principais aliados de Putin. Para especialistas, os exercícios militares promovidos pelos dois na fronteira permitiram que as tropas russas entrassem na Ucrânia também por Belarus.

"O regime de Lukashenko hoje é basicamente uma colônia russa", diz ela. O forte apoio militar do ditador belarusso também garantiu que manifestações da população fossem reprimidas. "Quando estive em Belarus tive muita dificuldade em encontrar alguém que apoiava o governo e que votou em Lukashenko."

O caso da Geórgia, que entrou em conflito com a Rússia em 2008, após se aproximar do Ocidente e da Otan, faz a autora lembrar do que vive a Ucrânia hoje. Fatland inclui na lista outro agravante: 20% do território da Geórgia é controlado por separatistas russos.

"Vejo a Geórgia em risco e, assim como a Ucrânia, não tem amigos poderosos, não é parte da União Europeia, não é membro da Otan e sabe que ninguém virá salvá-la", observa.

A antropóloga afirma que a situação "mais curiosa" é enfrentada pelo Cazaquistão, onde parte da população que vive na fronteira é de origem russa. Para evitar que os locais virassem áreas separatistas, o governo cazaque, "sem muito alarde", deu incentivos econômicos para que habitantes de áreas centrais do país se mudassem para essas regiões.

"Assim, ali não seriam áreas dominadas", conta. "Acho que, enquanto o governo conseguir administrar uma boa relação com a Rússia, não há perigo imediato", acrescenta.

Outro aspecto que depõe contra o Cazaquistão é o fato de que, em janeiro, o país acionou a OTSC, aliança militar que integra com a Rússia, para pedir ajuda e reprimir protestos contra o governo.

"Foi com a ajuda de soldados russos que o governo cazaque conseguiu acabar com as manifestações de forma brutal e efetiva. Isso mostra o quanto o Cazaquistão depende da Rússia", aponta.

A relação dos países também é detalhada em outro livro de Fatland, "Sovietistão" (Editora Âyiné, 2021), em que relata visitas a cinco ex-repúblicas soviéticas: Cazaquistão, Turcomenistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão.

erikafatland - Christopher Nunn/Arquivo Pessoal - Christopher Nunn/Arquivo Pessoal
Erika ao lado do soldado ucraniano Vladimir em Donetsk; ex-professor, virou motorista de tanques em 2014 por causa dos conflitos na região
Imagem: Christopher Nunn/Arquivo Pessoal

A ditadura de Putin

"Para mim, a Rússia antes não era tratada como uma ditadura, e sim como um governo autoritário. Mas a Rússia tem mudado muito nos últimos anos, e agora definitivamente digo que ela é uma ditadura", afirma a antropóloga.

O governo russo atual, diz Fatland, é controlado por um pequeno grupo próximo a Putin —em sua maioria pessoas que também trabalharam na KGB, assim como o presidente. Ela vê na administração uma tentativa de isolar a Rússia, e cita como exemplo na ameaça de nacionalizar empresas estrangeiras após a debandada de companhias por causa da guerra.

Me lembra a revolução de 1917, quando Lênin nacionalizou tudo na Rússia. E sabemos como isso terminou: foi uma catástrofe."

A tentativa de isolamento, no entanto, esbarra na classe média, que acostumou-se a enviar os filhos para estudar no exterior e a frequentar franquias multinacionais como o McDonald's: "Tenho a percepção de que muitos ficarão furiosos se tiverem de mudar seus estilos de vida e abrir mão de privilégios".

"Muitos russos, especialmente as gerações mais novas, sabem como encontrar informação na internet, mesmo que vários sites sejam bloqueados pelo governo", acrescenta.

Fatland também observa que muitos russos têm parentes e amigos que vivem na Ucrânia, e que a tendência é que acreditem nos relatos de guerra vindos deles. Além disso, a morte de muitos dos soldados pode chocar a população. "Os soldados russos estão morrendo na Ucrânia, e voltarão para casa em caixões."

Mas esperança de dar fim à guerra e ao governo Putin, afirma, deve vir da própria população russa.

"É sempre melhor que a revolta contra um regime seja interna, e não que venha de forças exteriores."

Indicações de livros para entender melhor o conflito entre Rússia e Ucrânia - Arte/ UOL - Arte/ UOL
Imagem: Arte/ UOL

Errata: este conteúdo foi atualizado
O mapa que acompanha este texto indicou erroneamente o país de número 2 com sendo a Suécia, quando o correto é Finlândia. A legenda do mapa foi foi corrigida.