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Guerra da Rússia-Ucrânia

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"Minha perna parecia uma peça de carne", diz sobrevivente de teatro atacado

A ucraniana Natalia, que sobreviveu ao ataque ao teatro em Mariupol, prefere não mostrar o rosto - André Liohn/UOL
A ucraniana Natalia, que sobreviveu ao ataque ao teatro em Mariupol, prefere não mostrar o rosto Imagem: André Liohn/UOL

André Liohn

Colaboração para o UOL e para a Folha, em Zaporozhye (Ucrânia)

24/03/2022 15h11Atualizada em 25/03/2022 08h08

É na cama de um hospital na cidade ucraniana de Zaphorizhye que Natalia, 54, que prefere não dizer o sobrenome, relembra o horror que viveu quando o teatro onde estava abrigada com a família foi alvo de um ataque russo em Mariupol na semana passada. Hoje a guerra completa um mês.

No dia 5 de março, Natalia ouviu que as forças russas e ucranianas haviam decretado um cessar-fogo para que os civis de Mariupol, no sudeste da Ucrânia, pudessem deixar a cidade, alvo de intensos ataques, em busca de segurança.

"Desde o primeiro dia, a região onde moramos foi muito bombardeada. Não havia nenhuma hora do dia em que não ouvíssemos bombas explodindo muito perto de onde estávamos abrigados. Quando recebemos a mensagem de que poderíamos, saímos imediatamente", conta.

A população foi instruída a se juntar em diversos pontos da cidade. Aqueles que viviam na região central, onde ficava a casa de Natalia, deveriam se encontrar no Teatro de Drama de Mariupol. De lá, seriam todos escoltados em segurança pelos militares para fora da cidade.

Natalia foi ao local com a filha Yeva, 30, o genro Volodmyr, 28, e a mãe Viktoria, 86. Ao chegarem no início da manhã, encontraram uma multidão de pessoas.

As horas passaram e o número de pessoas só aumentou. No meio da tarde, uma enorme explosão foi sentida no centro da cidade. O som de um avião sobrevoando Mariupol fez com que muitas pessoas entrassem em pânico.

Sentimos um terremoto e uma explosão tremenda. Os militares ucranianos saíram com seus carros, muitas pessoas fugiram de volta para os porões de suas casas e muitas outras entraram no teatro para buscar abrigo
Natalia

Deste momento em diante, Mariupol foi alvo cada vez mais constante de ataques russos.

"Nos sentimos seguros dentro do teatro porque as paredes pareciam muito fortes e o teto era muito alto. Havia também um porão, fomos todos para dentro e não saíamos de lá para nada".

A administração da cidade não havia planejado abrigar pessoas dentro do teatro e a situação foi ficando cada vez mais complicada. "Tínhamos pouca comida. Os voluntários da cidade nos traziam a comida que podiam, e caminhões da prefeitura nos traziam água. Não havia energia elétrica, não havia gás. Os dias e, principalmente, as noites ficaram muito frios, ainda mais dentro porão. Cozinhávamos com a madeira de cenários que estavam nos fundos do teatro e todos se ajudavam como podiam", lembra Natalia.

Por mais de dez dias, centenas de pessoas ficaram no local sem camas ou colchões para dormir. Quando não estavam escondidas no porão, as pessoas dormiam sentadas nas cadeiras do teatro.

"Todas as cadeiras estavam ocupadas, o palco, a entrada e os corredores... As mulheres com crianças pequenas podiam ficar num corredor estreito que parecia ser mais seguro por não ter janelas".

Segundo Natalia, pelo menos 1.500 pessoas ficaram presas dentro do teatro. Sem poderem sair por medos dos ataques, começaram a ter problemas com a limpeza dos banheiros. "Não havia água para limpar o banheiro e as privadas ficaram entupidas. A vida se transformou num inferno".

Natalia lembra que o ar nas áreas mais fechadas dentro do teatro ficou insuportável e as pessoas começaram a buscar abrigo mais próximo da porta de saída. Para se protegerem de possíveis estilhaços em um eventual bombardeio, uma barricada com móveis e cadeiras foi erguida.

Com o passar dos dias, foi aumentando a presença de crianças mais próximas da porta do teatro, área menos protegida. Diante da situação, os voluntários tiveram a ideia de escrever do lado de fora do prédio a palavra "crianças" usando tinta.

"Eles queriam garantir que as crianças e mulheres pudessem estar na área da frente do teatro com mais segurança", diz Natalia. A escrita, porém, não foi suficiente. No dia 16 de março, uma grande explosão atingiu o teatro.

Imagem de satélite mostra a palavra "crianças" em russo escrita em grandes letras brancas na calçada em frente e atrás do teatro - Maxar Technologies/via Reuters - Maxar Technologies/via Reuters
Imagem de satélite mostra a palavra "crianças" em russo escrita em grandes letras brancas na calçada em frente e atrás do teatro
Imagem: Maxar Technologies/via Reuters

No momento do ataque, o genro Volodmyr estava na porta do teatro lendo um livro. Já Natalia, sua filha e sua mãe estavam dentro do prédio por causa do frio.

Com a explosão, Natalia perdeu a consciência e só se lembra do momento em que acordou ouvindo gritos e choros. Ela conseguiu reconhecer a voz da filha gritando por seu nome e sentiu muito frio.

Por um momento, não lembrava onde eu estava. Não lembrava o que estava acontecendo naqueles dias, pensava apenas que tinha que tentar proteger minha filha e minha mãe. Quando me lembrei de tudo, também senti muita dor, minhas pernas pareciam pedaços de carne e meu braço estava ferido, achei que minha vida terminaria ali
Natalia

Os feridos foram levados aos hospitais. A filha e a mãe de Natalia não se feriram, mas desde o dia do ataque elas não têm informações sobre Volodmyr e dizem acreditar que ele morreu.

"Alguns homens me levantaram com um lençol e me levaram até um carro, que me levou até o hospital. Havia muitas pessoas mortas, o teto não existia mais, o teatro estava dividido em duas partes".

A Prefeitura de Mariupol disse estimar em 300 o número de mortos no ataque. Não houve, por parte das autoridades ucranianas, um levantamento confiável de feridos e eventuais mortos.

Segundo Natalia, parte das vítimas foi levada para o Hospital Cardiológico da cidade, onde os médicos disseram que não podiam ajudar porque o local não tinha condições para atender os feridos.

Neste momento, um veículo militar russo chegou com um soltado ferido, que também precisava ser tratado, relata a ucraniana. Os médicos também disseram que não poderiam ajudar o militar e, segundo ela, foram ameaçados de morte.

"Minha filha conseguiu convencer os soldados a me levarem para o hospital de emergência da cidade, o Hospital N3, mas ameaçaram minha filha, dizendo que se o soldado ferido morresse, eles também me matariam."

"No hospital de emergência, os médicos não puderam fazer nada por mim. Se limitaram a colocar bandagens em torno da minha perna e impedir que ela continuasse sangrando. Eu havia perdido muito sangue", conta Natalia.

Os médicos disseram que ela precisava ser tratada imediatamente em outro hospital, que onde estavam poderiam apenas tentar amputar sua perna. Mas, mesmo assim, não poderiam garantir que ela sobreviveria.

Três dias se passaram até que um grupo de voluntários aceitou se arriscar para levá-la para fora da cidade.

"As ruas de Mariupol estavam todas destruídas e todos os tipos de bombas continuavam sendo lançadas", afirma Natalia.

"Me colocaram numa van com outras pessoas e nos levaram até Berdiansk, onde precisei deixar minha mãe, que já estava muito doente. Não sei se ela continua viva ou se ela morreu."

No caminho entre Berdiansk e Zaphorizhye, destino final onde ela se encontra agora, a van com Natalia foi parada diversas vezes por soldados russos que buscavam armas.

Nasci na Rússia, minha mãe e meu pai são russos, tenho minha família em São Petersburgo.Pensávamos que os russos nos respeitariam. Os soldados russos não conseguiam olhar nos meus olhos, nas minhas feridas. Eles deviam sentir vergonha, eu podia ser a mãe deles
Natalia

Mapa Rússia invade a Ucrânia - 26.02.2022 - Arte UOL - Arte UOL
Imagem: Arte UOL