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Crítico, Gorbachev concordava com Putin sobre Ocidente hostil com a Rússia

 O presidente russo Vladimir Putin (à direita) ouve o ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev em 2004 - REUTERS/Christian Charisius/Foto de Arquivo
O presidente russo Vladimir Putin (à direita) ouve o ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev em 2004 Imagem: REUTERS/Christian Charisius/Foto de Arquivo

Do UOL, em São Paulo

31/08/2022 04h00

O ex-líder soviético Mikhail Gorbachev, responsável por encerrar a Guerra Fria, em 1991, sem derramamento de sangue, era um crítico interno do presidente russo, Vladimir Putin.

Oitavo e último líder da União Soviética, ele acreditava que o regime de Putin retrocedia a abertura da Rússia com países ocidentais. Ele, porém, concordava com a crítica aos países do Ocidente sobre a relação com a Rússia. Gorbachev morreu ontem, aos 91 anos.

Segundo César Albuquerque, pesquisador do LEA (Laboratório de Estudos da Ásia), ligado ao Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo), Gorbachev tinha uma visão muito alinhada a Putin ao entender "que a atuação russa não é uma atuação de iniciativa hostil, mas sim uma resposta as hostilidades que a Rússia vem sofrendo desde 1991."

"Então Gorbachev se alinha a esse discurso, não por defender a retomada de uma hostilidade que marcou a Guerra Fria, mas por entender que a Rússia era vítima de algum tipo de hostilidade do ocidente que pretendia reduzi-la a um papel secundário no cenário internacional."

Como era a relação de Gorbachev e Putin? De acordo com Albuquerque, Gorbachev tinha uma imagem positiva de Putin em 2000, quando este assumiu a presidência da Rússia pela primeira vez.

"Essa imagem é compartilhada pelos russos até hoje, que enxergam Putin como um dos responsáveis pela estabilização econômica e política interna do país depois dos anos de crise, além de recolocar a Rússia com protagonismo internacional", explica.

Depois dos protestos da juventude russa, contra as eleições legislativas, em 2012, Gorbachev rompe com Putin. "Ele começa a apontar retrocessos na estrutura democrática do país, retrocessos políticos dentro do regime. Para Gorbachev, Putin estaria retrocedendo a abertura conquistada com o fim da União Soviética", diz o pesquisador.

Críticas internas, apoio externo. Mas, externamente, ainda de acordo com o pesquisador César Albuquerque, nunca houve uma ruptura entre os dois.

"Apesar de o Gorbachev não ter chegado a defender abertamente intervenções militares ou uma retomada de atmosfera de competição com o ocidente, ele defendeu atuação da Rússia na Geórgia, em 2008, não criticou a anexação da Crimeia [território ucraniano] pelos russos em 2014, e defendeu a atuação da Rússia na Guerra da Síria", explicou o pesquisador.

Gorbachev se manifestou pouco em relação à guerra russa na Ucrânia, travada desde fevereiro, por já estar doente. E também por ter se tornado crítico no cenário doméstico, o que lhe tirou espaço na mídia russa.

Acreditava que o Ocidente era hostil com a Rússia. Gorbachev tinha uma visão muito alinhada ao discurso oficial do Putin: de que a Rússia vem sofrendo hostilidades do Ocidente desde sua independência, em 1991.

"Gorbachev entendia que, ao longo das suas reformas, entre 1985 e 1991, ele reduziu as tensões e criou oportunidades de aproximação entre a Rússia e o Ocidente e que, a partir da década de 1990, as oportunidades não foram aproveitadas, principalmente, porque o Ocidente parecia manter as hostilidades como forma de colocar a Rússia num papel secundário dentro do cenário internacional e que aproveitar da crise que ela vivia", explica o pesquisador César Albuquerque, da USP.

Quem era Gorbachev? Mikhail Gorbachev foi responsável pela reabertura russa para o mundo.

Nascido em março de 1931, na cidade de Privolnoye, na Rússia, era membro de uma família de imigrantes russo-ucranianos. Entrou para o Partido Comunista da União Soviética em 1952, se formou em Direito em 1955 e em Economia em 1967. Em 1990, recebeu o Nobel da Paz.

Para César Albuquerque, pesquisador da USP, Gorbachev foi um dos "grandes protagonistas dos processos que levaram ao fim da União Soviética e ao fim da Guerra Fria e das tensões que marcaram a segunda metade do século 20".

Gorbachev - GETTY IMAGES - GETTY IMAGES
Mikhail Gorbachev em sua despedida em 26 de dezembro de 1991
Imagem: GETTY IMAGES

"Enquanto líder da União Soviética, ele promoveu uma série de reformas econômicas e políticas que levaram a dissolução da antiga superpotência socialista e mudaram drasticamente a ordem mundial. Ele foi protagonista nesse período final, a partir de 1985, quando implementa as suas reformas e leva ao fim desta era da Guerra Fria", explicou.

Mas, internamente, não era muito querido pelos russos. "A imagem do Gorbachev é bastante negativa. Atribuem a ele a imagem de alguém que colocou a Rússia num papel secundário".

Já Virgílio Arraes, professor de história contemporânea da UNB (Universidade de Brasília) e coordenador de um grupo sobre história das relações internacionais da ANPUH (Associação Nacional de História), Gorbachev esforçou-se para manter a Rússia diplomaticamente bem com o Ocidente. "Ao reconhecer a decadência inexorável do regime comunista. Na política, a ausência de democracia. Na economia, a perda de competitividade com a Terceira Revolução Industrial."

Por isso, completa Arraes, "o laço entre Putin e Gorbachev seria, hipoteticamente, o de manter a grandeza da Rússia, apesar dos caminhos diferentes".

A guerra na Ucrânia é uma tentativa de Putin de retomar a União Soviética? Para o cientista político Vicente Ferraro, pesquisador da política russa e ucraniana e integrante do LEA, a guerra na Ucrânia está mais ligada aos fatores internos da Rússia, como a sustentação do regime autoritário e as próprias percepções ideológicas de Putin em relação ao espaço soviético e da Ucrânia.

"A guerra na Ucrânia acaba reforçando a percepção de que a Rússia é cercada de inimigos. Isso acaba dando força ao discurso de Putin de confrontação com o Ocidente. É um discurso que ajuda então a legitimar o seu regime."

Então, continua Ferraro, Putin acredita na "ideia do mundo russo", "de que a Rússia tem uma obrigação, não apenas com cidadão da Rússia que estão na Rússia, mas também russos étnicos que estão fora da Rússia, principalmente no espaço pós-soviético. A Rússia teria uma obrigação de interferir e mesmo anexar essas regiões, como seria o caso da Ucrânia".